Pular para o conteúdo principal

Como ficar sozinho, de Jonathan Franzen — Parte 02

Jonathan Franzen
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Grosseria, irresponsabilidade, má-fé e estupidez são marcas das relações humanas reais: o assunto de conversas, a causa de noites em branco. Mas, no mundo consumista da propaganda e das compras, nenhum mal é moral. Os males consistem em preços elevados, inconveniências, poucas opções, falta de privacidade, azia, queda de cabelo e estradas escorregadias. O que não é surpresa alguma, já que os únicos problemas para os quais vale a pena buscar uma saída são aqueles cuja resolução implica gasto de dinheiro. Mas o dinheiro não nos livra dos que não têm modos – a pessoa que conversa no escuro do cinema, a cunhada que nos trata com condescendência, a namorada que só pensa nela mesma – a não ser que nos ofereça refúgio numa privacidade atomizada. E o Século Americano se inclina exatamente a tal privacidade"


"Imagine que a existência humana seja definida por uma Dor: a Dor de não sermos, cada um de nós, o centro do universo; de nossos desejos serem mais numerosos que os meios de satisfazê-los. Se vemos a religião e a arte como meios historicamente eletivos de acertarmos as contas com essa Dor, então o que acontecerá com a arte quando nossos sistemas tecnológicos e econômicos, e mesmo nossas religiões comerciais, se tornarem suficientemente sofisticados para fazer de cada um de nós o centro do nosso próprio universo de escolhas e gratificações? A resposta da ficção para o suplício causado pelos maus costumes, por exemplo, é rir deles. O leitor ri com o escritor e sente menos sozinho diante de tal tormento. Essa é uma transação delicada e requer algum esforço. Como se pode competir com um sistema – converse na tela; saia de casa com um modem; obtenha o dinheiro para fazer negócios só com o mundo privatizado, em que trabalhadores devem ser gentis para não perder os empregos – um sistema que, para começar, nos poupa do suplício?"


"O silêncio é eficiente apenas se em algum lugar alguém esperar que sua voz seja alta"


"Embora bons escritores não procurem deliberadamente seguir tendências, muitos deles acreditam ter a responsabilidade de tratar assuntos contemporâneos, e agora confrontam uma cultura na qual quase todos os temas são esgotados a quase todo instante. A escritora que quiser contar uma história que seja verdadeira não apenas em 1996, mas também em 1997, pode se sentir perdida, sem referências culturais sólidas. Tópicos relevantes enquanto ela planeja escrever o romance quase com certeza estarão ultrapassados quando o livro for escrito, reescrito, publicado, distribuído e lido"


"O pânico cresce no hiato entre a duração cada vez maior do projeto e o tempo cada vez menor da mudança cultural: como projetar uma embarcação que possa flutuar na história por tanto tempo quanto é necessário para construí-la? O escritor tem mais e mais coisas para dizer a leitores que têm menos e menos tempo para ler: onde encontrar energia para se comprometer com uma cultura em crise, quando a crise consiste na impossibilidade de comprometimento com essa cultura?"


"É difícil considerar a literatura um remédio, quando sua leitura serve sobretudo para aprofundar nossa alienação depressiva da cultura central; cedo ou tarde, o leitor que raciocina em termos terapêuticos acabará considerando a própria leitura uma doença"



Trechos extraídos do livro de ensaios "Como ficar sozinho" (Companhia das Letras, 2012), de Jonathan Franzen.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...