Pular para o conteúdo principal

Espalitando, de Paulo Bono — Parte 02

Paulo Bono
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Quando se é gordo, negro, anão, albino, aleijado ou coisa assim, esperam que você conte piadas, seja legal, passe a cola da prova, dê passagem, dê o lugar, faça silêncio, receba o soco, diga obrigado, aguente firme, tenha fé, comporte-se e seja feliz simplesmente por sobreviver com a caridade de quem é gente-bonita e faz o favor de sorrir para você"


"Sempre admirei os derrotados, os feridos que não se entregam e resistem ao capricho da morte. Aqueles que, por questão de honra, princípio, raça ou pirraça, não dão o braço a torcer e estão cagando para os vencedores. O vencedor pode ter a medalha, mas ele não tem a menor graça. Sou mais o pugilista que foi à lona, que já não enxerga porra nenhuma e cospe sangue na cara do campeão mundial. Sou mais o samurai que não se entrega nem fudendo, o bêbado que resiste ao tombo, contrariando a vontade de todos, o cachorro sem perna que ainda luta por um pedaço de bife, o desempregado que pendura a conta, o time rebaixado que tenta um gol de honra nos acréscimos"


"Bem, estava de volta a Salvador. Como dizem por aí, terra de gente bonita e alegre. Imagine como eu me sentia à vontade. E logo estava ali, aflito na esteira das bagagens. Como sempre, achando que seria o último a encontrar a mala ou que minha mala tinha ido parar na puta que pariu. Mas minha mala apareceu. Com sua fitinha vermelha pendurada. E aquilo me fez ligeiramente feliz e aliviado. E quando aquela grande porta de vidro se abriu não vi nenhum rosto conhecido. Apenas rostos frustrados ao me ver, como se dissessem, sai da frente, gordo, não é você que estamos esperando"


"É melhor fazer o que tem de fazer o quanto antes. Caso contrário, corre-se o risco de acostumar-se à infelicidade"


"Já passam da meia noite. Desço a ladeira sem pressa, sem preocupações. Reconheço também que algo dessa baianidade toda que falam por aí é verdade. Falo desse ventinho gostoso que sinto agora, do menino que ajuda a baiana a desarmar o tabuleiro para ganhar um acarajé, da zoada ali no boteco, do cochilo do taxista, do casal de amantes debaixo do orelhão, da plenitude vivida nas ruas de Salvador"


"Estava gostoso. E tocava Numa Sala de Reboco. Ao invés de "gente bonita", como dizem que há nas grandes festas, havia gente de verdade, caipiras de verdade. Todo mundo arrastando o pé. Um roça-roça da porra. Havia um casal que não parava um minuto. Os dois baixinhos. Dançavam acelerados, muito à frente do ritmo da música. Dançavam encaixados. E de rostos colados. Acho que podiam soltar uma bomba de mil ali dentro, que eles não iriam se desgrudar. Com certeza, depois daquele forró, quando voltassem para a roça, iriam fazer outro filho"


" – Porra de Chapada.
– Man, tem cada trilha de fuder.
– Porra de trilha. Eu sou algum sacana?
– Não adianta, Man – disse Paty – Bono não gosta de nada.
– Mas vale à pena, man. A gente encontra cada cachoeira do caralho.
– Sim, e depois? – perguntei a Man.
– Depois o quê, man?
– Depois da cachoeira, cacete, faz o quê?
– Depois volta pra pousada, Bono! – disse Paty!
– Esse é o problema. Você anda, anda, anda, escala, desce, pula, se fode todo pra encontrar uma porra de uma cachoeira. Grandes merdas. Mas vamos dizer que é uma cachoeira fudendo, linda, essa porra toda. Aí você toma banho na sua cachoeira, beleza, aí depois tem que andar tudo de novo, voltar a porra toda, se fuder tudo de novo. O saldo é negativo. Se por acaso, depois da cachoeira, viesse uma porra de um helicóptero, me pegasse e me levasse de volta pra pousada, tudo bem. Mas não, tem que andar tudo de novo. Pra ficar a noite toda passando Hipoglós no rabo, com a perna pra cima (...)
Paty Guaraná e Man continuaram falando sobre as opções do feriadão na Bahia. Falaram mais da Chapada, da praia de Jauá, de uma Choppada em Sauípe. Nada me interessava. Exceto a preferência pelo acarajé e vatapá, acho que não tenho nada da Bahia. Não tenho essa alegria toda"



Trechos extraídos do livro de crônicas "Espalitando" (Cousa, 2013), de Paulo Bono.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez poemas de Carlos Drummond de Andrade no livro A rosa do povo

Consolo na praia Carlos Drummond de Andrade Vamos, não chores... A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour ? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento... Dorme, meu filho. -------- Desfile Carlos Drummond de Andrade O rosto no travesseiro, escuto o tempo fluindo no mais completo silêncio. Como remédio entornado em camisa de doente; como dedo na penugem de braço de namorada; como vento no cabelo, fluindo: fiquei mais moço. Já não tenho cicatriz. Vejo-me noutra cidade. Sem mar nem derivativo, o corpo era bem pequeno para tanta