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Mar de Azov, de Hélio Pólvora

Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad


"— O que é ser homem, pai?
O pai pensa.
— Ser homem é assumir a realidade"


"O mar é um animal gigantesco que arqueia o dorso, rouqueja e bufa, rosna e geme ao seu lado, a seus pés. As ondas erguem-se a poucos metros em forma de vagas, cavalgadas por manchas de espuma que não tardam a quebrar — e ele tem a impressão de correr à beira de um túmulo líquido que poderá levantar-se de repente em forma de muralha e sepultá-lo"


"Juntem o povo em praça pública e ele gritará qualquer coisa, contra ou a favor, não importa o quê, não importa contra quem. Basta que alguém disfarçado na multidão lance o primeiro brado"


"Uma plantação de cacau é catedralesca. A nave sobe e desce outeiros, arrasta-se para o espinhaço de serras, atira-se na vertigem dos tombadores e grotas, pode deter-se à beira de um capinzal, à margem de um rio ou lagoa, em fimbria de mata ou capoeira, em baixios pantanosos ou em estéreis extensões de pedregulhos e pedreiras. Mas tenham a certeza de que, além do obstáculo, a nave continua sua viagem de árvores reunidas em muda atitude comicial, drapejando ao vento ou quase paradas nos rigores de um estio mormacento — e sempre as nódoas verdes e amarelas de seus frutos, por vezes as coifas de cipós finos lembrando cabeleira flutuante de mulher afogada"


"O brasileiro é antes de tudo um fraco. Se vê um balcão, arrima-se a ele. As paredes e os portais servem-lhe de encosto. Mole, bambo, preguiçoso, ampara-se até nos outros, quando conversa. Dizem que a mão no ombro, no braço, o estilo de falar agarrando-se ao interlocutor é sinal de afetividade da raça. Parece mais busca de apoio físico. O brasileiro cresce nervoso, apático, sem tomar consciência do corpo, salvo para a função sexual, que ele confunde com safadeza. Dorme muito, desfibra-se na inação e na vadiagem. Falta-lhe ordem, disciplina, motivação"


"Mas eu teria o direito de trazer de longe, de mais de mil quilômetros de distância, o meu tédio, o meu enfado, os meus pesares e fadigas, as minhas doidas alegrias, a minha violência? Não uma violência que eu porventura cultivasse, mas a violência de ritmo que me foi imposta lá, a violência na qual entrei aos poucos, sem perceber, e que aos poucos tomou conta de mim, ditou os meus humores e os meus atos, transformou-se sem eu perceber em segunda natureza. Teria eu o direito de trazer da cidade grande uma parcela da violência coletiva, indesejada por mim porém absorvida à revelia, e distribuí-la então por pessoas sossegadas, que, pelo menos, aparentavam viver em paz? Teria eu esse direito? De modo algum"


"Olímpio tinha na mão direita um embrulho malfeito, em papel pardo. Um terno, algumas camisas. Os olhos ardiam, como se feridos por mil pontas de agulhas finíssimas, e a garganta sufocava. Parecia entalado por um bolo de comida maior que a largura do tubo digestivo. Na rua, sozinho. 'Largado por todos na rua', pensou. No olho da rua, como se dizia. No cu do mundo. 'Estou órfão', disse uma voz medrosa, no fundo de sua consciência, que ele reconheceu como sua. 'De agora em diante conto comigo mesmo, eu no meio do mundo.' Para onde ir?"


"'Vou sujar o seu carro', ele diz. 'Foda-se o carro', respondeu o vulto. Sentado quase à beira do assento, aprumado e formal como criança que pela primeira vez vai à escola, ele sentia o sangue escorrer da boca, dos lábios, de feridas nas têmporas e perto dos olhos (...) Despertou em plena noite numa cama de hospital (...) Parentes que montavam guarda viram-no acordar do seu sono traumático, precipitaram-se. 'Onde está minha mãe?', ele perguntou. Os parentes entreolharam-se. 'Em outro hospital', responderam. 'Mas ela está bem?', insistiu. Os parentes entreolharam-se outra vez. 'Está reagindo bem', disseram. E então ele pensou: está morta. Nos próximos três dias continuou a pedir notícias da mãe. Disseram-lhe que ela levara uma pancada forte no peito, o médico havia operado. Mas que passava bem. E ele pensou ainda: está morta, sepultada. No quarto dia dos quinze que passou no hospital ele deixou de se informar a respeito da saúde da mãe. Os parentes estranharam, até que um deles, menos paciente, chegou e disse-lhe um dia, à hora em que as luzes se acendiam na cidade: 'Sua mãe morreu'. Ele nada disse. O parente insistiu: 'Sua mãe morreu'. Ele encarou o parente e respondeu: 'Foda-se'"


"Atravessaram a areia, tão larga que parecia duna ou areal, não fosse sua rasa e lisa superfície, e chegaram ao mar. Ou o mar chegou-se. Melhor dizendo, todos se chegaram, eles e o mar, em movimento único de manobra, o mar insinuando a ponta espumante de suas águas, eles fazendo saltar grãos de areia na polpa dos polegares dos pés. Entregaram-se ao mar, que bramia de maneira surda, pacificada, cantante, um bramido de fera satisfeita. Deixaram-se envolver por seu abraço cálido, solto; os corpos tensos e brancos relaxaram então, a pele começou a formigar com as quenturas do sol e do sal. Os trópicos rolavam nas vagas e nas ondas, corriam para o que parecia ser a central geradora das máximas luminosidades"


"Isabel estira-se ao meu lado em pose relaxada (...) Desço a vista (...) no vale que então se forma e se prolonga para baixo, rumo a sítios úmidos e sombreados, começa o trigal. A penugem leve, finíssima, de cabeleiras de milho maduro, de hastes encaroçadas de trigo. A penugem cerrada, dourada, abre-se apenas para o poço do umbigo que talvez encerre águas ocultas. A penugem descai à medida que a pele afunda, esticada pela proeminência dos ossos ilíacos. E ao avançar para terras molhadas, irrigadas, protegidas pela sombra natural daqueles lugares ermos, o trigal cresce forte, vigoroso, encaracolado. O amarelo adquire ai tons mais fechados, de melaço grosso. Ah, os girassóis de Van Gogh, retorcidos, ásperos na aparência, inflamados como labaredas. O campo de trigo entra na área penumbrosa, se debruça à beira do charco, se mistura com o charco como certas raízes de plantas e certa vegetação eternamente gotejante. E cheiram as espigas entrelaçadas, altas, densas; cheiram na madurez, cheiram com o odor de searas completas, o feno segado no verão, eu quero afundar para ter o prazer de ver-me novamente à tona e novamente tentado a submergir"


"E então a mulher é colhida pela corrente. Embaixo, no leito fofo e andrajoso, as folhas acamadas cedem mais um milímetro; a corrente ergue o corpo retesado, libertando-o daquele último apego, daquele último ponto de apoio entre uma plataforma e o vazio. E a corrente puxa o corpo. O corpo adeja e se larga afinal na água. A mulher afunda (...) A água sobe além da boca, das narinas, fecha-se sobre a testa (...) a cabeleira flutua e logo submerge. Restam as borbulhas. A superfície da água dá a impressão de ferver. Depois se aquieta, de tal forma plácida que não se adivinharia ali a existência de correnteza capaz de despregar e arrastar corpos com a mesma indiferente força com que traz águas novas das cabeceiras, reboca troncos e pequenas ilhas de verdura desprendidas dos barrancos"


"Já vi tantas cenas iguais, tantos  encontros repentinos, que a repetição deles, embora com interlocutoras diferentes, é um prolongamento do primeiro, e mais que isso: a certeza de que, vivendo uma cena parecida, nesse caso eu existo. Nessas mulheres eu me revejo, nelas me multiplico como num eco, ou em vários espelhos. E na sucessão de refrações, o bosque a ocultar sempre a silhueta enevoada que de súbito à minha frente se incorpora, ruborizada, olhando-me com atrevimento ou de vista baixa, eu colho reflexos de mim mesmo, umas vezes borrados pela superfície toldada, outras vezes corretos e inteiros como se o fundo guardasse o exato modelo de  um corpo submerso"


"Um bosque de cacaueiros contém ao mesmo tempo as quatro estações do ano — nítidas, distintas, autônomas ... dependendo da natureza do terreno, da altura e copa das árvores, do entrançado da vegetação em baixo e em cima, dos acidentes de solo, das cabaças de cacau apodrecidas, das nuvens de insetos, dos jogos caprichosos de luz e sombra, da existência de água ou de terra seca. E das cobras, naturalmente"



Trechos presentes no livro de contos "Mar de Azov" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.

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