Mayrant Gallo - Foto: Ricardo Prado
O escritor e revisor Mayrant Gallo, autor dos livros O inédito de Kafka e O gol esquecido, entre outros, escreveu o posfácio Pulsando como um coração imortal para o livro de contos O grito do mar na noite (Via Litterarum, 2015), de Emmanuel Mirdad. Veja abaixo (após as imagens do posfácio no livro, texto na íntegra):
Pulsando como um coração imortal
1
A tarefa do contista pode, a princípio, parecer fácil aos leitores
incautos. Mas isso é um falso julgamento. Um romancista fisga o leitor e vai em
frente por duzentas páginas ou, quando tem fôlego e realmente algo a dizer e
souber variar o que dizer, quinhentas e até seiscentas, oitocentas páginas. O
leitor segue com ele, interessado pelo assunto (trama, personagens, peripécias,
cenários, contexto histórico) e pela forma (estilo, sintaxe, estrutura, tom,
ritmo, experimentos, inovações). O esforço é grande, mas a concentração é uma
só: um mundo específico num tempo específico e através de uma forma que, ainda
que enverede por experimentações técnicas e variações de registro, deve guardar
coerência e certa harmonia.
Já, no conto, e estou me referindo a um volume de contos, o autor
vai forçosamente “variar” de uma peça para a outra, e não somente o contexto e
os personagens, mas os pontos de vista, o registro verbal e a estrutura, sob
pena de, não o fazendo, cansar o leitor pela repetição. Passemos uma olhadela
pela obra de Tchekov, Maupassant, Machado de Assis, Kosztolányi, Carver, J. J.
Veiga, Arregui, Buzzati e tantos outros exímios contistas, que de imediato
comprovaremos isso. E ainda há o fato, como bem ressaltou João Antônio, de que
“a forma é sombra do assunto”; ou seja, mesmo que não queira variar e muito se
esforce para isso (Fernando Sabino é, talvez, o mais afortunado dos autores
desta tendência), o escritor vai moldar seu texto pela “fôrma” de sua história,
pelo ritmo, tom e complexidade de sua trama.
Portanto, a tarefa do contista é árdua: requer talento, vontade,
imaginação, leituras, habilidade com as palavras e constante deslocamento de
ponto de vista; ser muitos em um só.
Não menos árdua é a condição do leitor de contos, ainda que ele pretenda tão
somente se divertir: a cada relato terá que se situar num novo mundo e estilo;
é como se lesse vários romances concentrados ao extremo. Jorge Luis Borges
costumava dizer que, se imaginasse a trama de um romance, preferia, a escrevê-lo,
perpetrar um conto sobre um hipotético autor, numa época remota e num país
mítico, que o tivesse escrito e discorrer sobre as implicações que a existência
de tal livro acarretasse. Concordemos que, ao pensar assim, Borges elegeu o
conto como o gênero de sua preferência, declarou-se contista e se privou, de
antemão, da hercúlea empresa que é redigir um romance.
Se muito trabalho tem o contista, bem como o leitor, não menos
zeloso seria o do crítico. Também ele deverá, a cada história, ser muitos e
examinar sempre com outro olhar. Mas
não é o que ocorre, em geral. Não foram raras as vezes em que li um suposto
crítico afirmar que este ou aquele contista “foi feliz” em certos relatos, mas,
noutros, não. Ora, eles apenas foram diferentes. Puseram seu estilo a serviço
da variação, porque forma e assunto lhes reclamaram isso. Não corromperam seu
estilo, fizeram-no mais rico e fluido, elástico e diverso, talvez complexo.
Cortázar é assim. Não se repetir não é defeito, é mérito, pois, por mais que o
mundo sugira o contrário, com seus vazios apelos culturais, a literatura é uma
arte. A repetição é característica castradora do “engenho”, da “arte”, para o
consumo rápido e sem função transformadora do mero “artesanato”. Certa vez, um
editor, depois de ler um dos meus contos, foi taxativo: “Não vi neste relato o
autor de seus livros anteriores”. Claro que não, e ele deveria me parabenizar
por isso, até porque o autor é sempre o mesmo, mas o narrador, não. Todavia,
seu julgamento foi inverso: uma vez que não me repeti, eu teria fracassado. Na
verdade, o leitor que espera a repetição é o infantil (confinado à infância),
que pretende reproduzir a experiência anterior, que lhe foi avassaladora (o
reconhecimento de Cinderela, por exemplo), ou o leitor consumista, que prefere,
por economia de esforço e imaginação, “ler mais do mesmo”. É este, aliás, quem
alimenta os livros escritos pelo gosto de época ou pela moda, que dificilmente
duram mais que dois ou três verões. Os apressados coelhos sempre recorrentes.
Com efeito, os melhores escritores são os do “tipo tartaruga”.
Outra falha infame do crítico de contos é julgar qualquer relato
ou livro pelo seu gosto pessoal. Eu posso abominar o estilo de um determinado
autor, mas devo reconhecer a sua maestria, se ele a possui, bem como a sua
importância para a literatura de seu país e, talvez, do mundo. Além do mais,
nem toda história é atraente e imprescindível para qualquer pessoa. É natural,
de minha parte, que eu despreze alguns temas e estime outros. Por mais plural
que eu me queira, sou um. Faço minhas
escolhas, tenho minhas predileções. Portanto, é fundamental observar num conto
não somente a trama, mas o como o
entrecho se desenvolve, de modo que, mesmo que não apreciemos a história,
possamos destacar o seu valor enquanto forma, habilidade do autor em construir
o meio pelo qual a história chega até nós, retém nossos sentidos e espicaça ou
rechaça a nossa imaginação.
Posto isto, vamos a este volume de contos.
2
Emmanuel Mirdad não pretendeu, por sua própria vocação e escolhas
estéticas, apenas contar histórias neste volume. E consegue um feito altamente
elogiável: trabalhar com tipos, sem meramente repeti-los, revitalizando-os,
inclusive. Acompanhamos, com igual interesse, tanto o infortúnio do homem de
terceira idade, do menino doente, do sujeito infeliz em seus relacionamentos
amorosos, da mulher frígida ou assexuada, quanto o dos mulherengos
contemporâneos, que agem in situ e
“in sites”. Aliás, os signos da contemporaneidade sobejam em todo o volume,
numa evidência explícita à vida que levamos, em meio a uma multiplicação
infindável de ícones da propaganda, internet,
dos aparelhos de celulares, tablets, games, canais de tevê por assinatura
etc. Num instante, estamos aqui; noutro, em Berlim. Tal condição nos leva a uma
existência sem duração nem permanência, em que os sentidos, estimulados a todo
instante, não se detêm em nada. Estão em constante movimento, em constante
permuta de preferências e escolhas, em constante mutação.
Se a velocidade física, dos corpos no espaço e no tempo, impulsionados
por trens, bondes, automóveis e aviões, foi um dos motivos capitais da
literatura do início do século XX, a velocidade virtual é, de longe, o que mais
nos estimula à leitura de livros ou textos, à audição de músicas ou a vermos um
filme, um vídeo. Um livro que não é veloz, uma canção que não seja acelerada,
um filme que não nos intoxique com sua sucessão de cenas em correria
desenfreada parecem não nos atrair. Digo isso de maneira geral, porque eu mesmo
não me aferro a tais princípios estéticos; na verdade, filmes vagarosos e
livros cuja trama recai sobre as ideias são, em muitos casos, os meus
preferidos. E não abro mão de um Chopin, um Noel Rosa, ou Beatles, artistas que
fizeram da melodia a essência de sua arte. Mas, à minha volta, o que vejo é um
culto ao veloz, ao efêmero e ao perecível.
Conhecedor e usuário deste mundo “suprafísico”, rarefeito a
extremo, Mirdad projetou seus contos como se desejasse – e isso é um julgamento
meu, bem pessoal, e que em nada depõe contra o autor e seus leitores –, ao
mesmo tempo, reproduzi-lo e ironizá-lo. Não foi o primeiro a fazer isso, nem
será o último. O que importa é o que ele obteve, tanto para o deleite quanto
para o mal-estar do leitor, afinal de contas o “efeito de estranhamento”, se
nem sempre é bem recebido (Alain Resnais é a prova, com seu Ano passado em Marienbad), contribui e
muito para a perpetuação e propagação da obra de arte. E não se pode deixar de
lado o método do autor, que, a exemplo de Poe no conto e de Baudelaire na
poesia, busca estruturar sua narrativa no intento de, ao fim, surpreender ou
socar tanto seus leitores quanto seus personagens. Com isso, ele retira o
gênero de sua casca “croniqueira”, bastante em voga até hoje, muito embora, ao
optar por fazer uma leitura por demais fiel deste mundo como ele presentemente
é, incorra, aqui e ali, num registro que não consegue escapar da crônica,
gênero do qual é um leitor assíduo e confesso. O maior exemplo desta tendência
talvez seja o longo Quase onze dias,
que também desloca para o seu bojo meandros ensaísticos. É um conto antes de
ideias que de entrecho. A trama é mínima, e o alimenta uma série de
coincidências entre fatos históricos e pessoas reais que, para místicos de
sobreaviso, não serão meras coincidências. Proposta semelhante movimenta-se em Assexuada, relato que reúne anotações de
diário, ideias panfletárias, universo editorial e de autores e, de certo modo,
crítica literária.
Aqui se paga
propõe um efeito inverso. É todo ele ação, trama. Dois personagens apenas, que,
ao reagir conforme o que possuem – o que a realidade lhes oferta, melhor
dizendo –, acabam por troçar do mundo e de si mesmos. E, ainda que o assunto
seja de natureza a estimular no leitor o sentimentalismo – “O pequenino tem os
cabelos ralados por um câncer agressivo” –, o que se obtém, ao fim, é um
esvaziamento total da emoção, que se vê escarnecida pelo desfecho inesperado e
farsesco. Chá de boldo consegue, em
sua diferença e seus percalços de continuidade, um efeito semelhante, mas
promovendo no leitor certa empatia, incitada pela vingança. Ao menos na ficção
estamos do lado dos idosos; na vida, não sei.
Um dos contos mais divertidos do conjunto é Receba. Mas “divertido” no sentido machadiano, de um humor velado,
de meia boca. As aventuras amorosas de Pedro Henrique estão longe do que se
entende hoje como verdadeiramente cômico e que a tevê e o cinema veiculam à
exaustão. O que é realmente engraçado nesta história é a evidência de que o
protagonista, muito embora consciente de seus quase êxitos, e especialmente de
seus fracassos, mantém a linha, segue em frente e volta a se aventurar, como o
boxeador tonto de Chaplin. É nisso que reside o cômico. Nem a alteração do
refrão do conto no final – “#tome” – é capaz de redimi-lo. Ele continuará a ser
o que sempre foi: um incauto. Um autodestrutível Casanova às avessas.
Não escaparás,
como sugere o título, é um relato acerca da morte. Ela é a protagonista, mas é
a solidão de nossa época que a anima. Os personagens que infestam o conto estão
ali somente para justificá-la com suas vidinhas tediosas e sedentárias.
Anônimos e infelizes, caminham em direção ao fim inevitável. Não há como
escapar. Quase escutamos o murmúrio sombrio: vocês vão morrer. E não sentimos
nada, pois não farão falta a ninguém nesta vida. Estruturado em breves seções
fartas de realismo, este conto segue como um vórtice para o seu desfecho. Numa
realidade como a nossa, se um assassino na noite não chega a chamar a atenção,
quando ele invade o elevador é a evidência de que algo estranho está
acontecendo. Mas, se isso acontece, já é tarde. É o que o conto parece sugerir.
Tarde para reagir à vida que levamos, e que nos conduz ao irremediável.
Em três contos, talvez a
palavra “instinto” constitua o motor de suas tramas, se não a substância de seu
assunto. Em Sol de abril, o mundo da
música popular dá o tom de uma história de amor desprovida das convenções do
gênero. A Caolha, exímia sanfoneira, tem na música a sua grande paixão, mas,
como qualquer pessoa, é fisgada pelos sentimentos mais triviais e acaba
maculada pela selvageria humana. Não muito diferente do que se fez (ou faz) com
o assum preto, cujos olhos são vazados “para ele assim cantar melhor”. Mudam os
séculos, mas o mundo continua o mesmo, a chafurdar em seus alicerces de
crueldade e sangue. Já em O banquete,
racismo, imigração ilegal, preconceito social e racial, além de heroísmo
efêmero, tão a gosto do jornalismo televisivo, funcionam como uma espécie de
painel difuso do nosso mundo cotidiano, tão caótico aqui quanto em Bombaim,
Cidade do México ou Moscou. Não há como escapar à sensação de que a vida está
passando, in loco, diante de nossos
olhos, neste conto de pedras que rolam, e nada se pode fazer para se conter a
avalanche, a não ser que fosse possível parar o relógio. Do conflito no
trânsito à ação da polícia, mal assessorada pelas leis, prevalecem os
instintos, em detrimento da razão.
Bonecas tem na sua essência o propósito de ironia, motor mais constante da
alta literatura e palco de autores como o contista Orígenes Lessa (mal lido e
mal compreendido) e Nelson Rodrigues, especialmente o mais cáustico, de A vida como ela é. Dos interstícios das
sessões de exercícios nas academias de musculação sobe a névoa de ambiguidade,
a desmontar os ideais de macheza e desvelar o mundo. Os indivíduos talvez sejam
sempre dois, antagônicos: aquele que a sociedade exige e propaga quase como um
tipo irretocável e aquele que, em surdina, os desejos alimentam e fazem
aflorar, estabelecido um contexto favorável. É assim que, por efeito da
corrente em voga ou da vontade pessoal, enfim liberta, assume-se o que se é ou
tenta-se ajustar à forma fixa que a vida em sociedade prevê como a mais
confortável. Nos dois casos, porém, talvez haja escolha; ou não: “o instinto
responde”, como uma paródia do livre arbítrio.
No palheiro demonstra que, em meio ao caos organizado
de liberdade e excessos que é o mundo contemporâneo,
ainda é a natureza a mais poderosa das forças da vida. Num instante, estamos
aqui e, no outro, por efeito de uma onda, nos tornamos uma breve lembrança na
memória de alguém. Carnaval, sexo, traições e chuva nos chegam como no
noticiário da tevê, que, por sua vez, finda a notícia trágica do momento, salta
para o fato seguinte, tão trivial quanto aqueles: o futebol, a contratação de
um craque para o time mais popular do Brasil, comemoração imediata a isto,
indiferença, tédio. Alguém perdeu a vida, sim, perdeu. Simples detalhe entre as
muitas novidades do dia.
A sucessão de cortes bruscos e velozes e a troca constante de foco
narrativo que caracterizam este relato constituem um espelho da própria
existência e, se comparecem, em maior ou menor grau, a todos os contos do
volume, é porque este é o jeito de viver que, de uns tempos para cá, adotamos e
que nos alimenta. É por isso que não toleramos certas demoras e esperas, porque,
se assim ocorre, não estamos no ritmo; interrompemos o fluxo, travamos, como dizem por aí, estagnamos.
Por outro lado, todos estamos sendo vistos, ao menos aparentemente, efeito
talvez da ideia de que, com tantas câmeras espalhadas pelo mundo, a vida também
é um filme. Cada pessoa é por si uma narrativa. Foi-se o tempo dos contos de um
só personagem, acompanhado passo a passo pelo narrador em sua jornada
particular. Agora a pluralidade do mundo se impõe representar, e a narrativa,
antes única, se pulverizou em muitas, num mosaico de alucinações. Neste
sentido, os contos de Mirdad, a um só tempo, reproduzem a sua época e a
criticam.
Referi no início a necessidade de variação de assunto e
principalmente de forma, de modo que, durante a leitura, o leitor não se
fatigue. Isso, não raramente, se dá através da própria repetição, o que parece
constituir um paradoxo conceitual. Sem dúvida que é, e é por isso que a
literatura é uma arte. Cada conto de Mirdad aqui é uma nova proposta extraída
de um propósito único: retratar o nosso mundo. Cada conto é uma fotografia de
um álbum espúrio. E ele o constrói com tamanho êxito, que chego a temer que,
por isso, seu livro acabe rotulado. Mas acho que não, pelo contrário: se no
futuro, alguém necessitar saber como era a vida neste início de século XXI,
espécie de Belle Époque de la Technologie,
deverá forçosamente ir aos documentos, entre os quais a literatura é um dos
mais poderosos, por sua singularidade autoral, e, encontrando O grito do mar na noite, achará a
própria vida daquela “nossa presente época”, pulsando como um coração imortal.
Mayrant
Gallo
Salvador-BA
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