Pular para o conteúdo principal

Cinco poemas e três passagens de Gustavo Felicíssimo no livro Desordem & outros poemas inéditos

Gustavo Felicíssimo
Foto: Fausto Roim


À posteridade
Gustavo Felicíssimo

Ocorreu-me de escrever
um poema à posteridade.
Um poema que assegure
a permanência do meu nome,
seja lá o que isso signifique.
Um poema tão claro e puro
quanto essa exclamação:
posteridade, vá se foder!

--------

Ladrando feito um cão
Gustavo Felicíssimo

Certo! Um dia verei Deus
com esses olhos que a terra há de comer.
O que face a face me dirá, não sei,
           mas lhe beijarei as mãos
           e tomarei a sua benção
como outrora fiz à minha mãe.
Então mostrarei o nome do seu filho
impresso nas paredes dos prostíbulos
e nas páginas de antigos livros
que unem e separam os homens.
Mostrarei tantos clamores inauditos,
os discursos pela paz mundial
            e aquele franzino Davi
montado em poderosos helicópteros
e tanques de guerra subjugando o seu irmão.
Estarei ladrando feito um cão
           e ele me lembrará
que a videira é seca, suja e torta,
que esse vale é feito de lágrimas.

--------

Hodierno
Gustavo Felicíssimo

Aqui, onde bárbaros viram heróis,
onde por vergonha ou medo
todas as vozes se calam
num delito coletivo e contraditório,
todas as solidões se proliferam
e os remorsos frutificam
silêncios cada vez mais vastos.
Os gritos no vazio se expandem,
mordaças são distribuídas gratuitamente
           e na mente do incauto
a aparente sensação de felicidade
enquanto o amanhã, por mais remoto que pareça
            ri da hipocrisia reinante
e abrolha nos comerciais de televisão,
Ah! Já não faço mais planos,
meu futuro é o tempo presente
gasto com tudo o que não possui serventia,
pois na ternura do abraço amigo
sou o anfitrião das coisas vãs
e vivo porque em viver não há mistério,
apenas uma perene solidão e seu perfume.
Existo pela palavra, resisto pela fé,
ouço a voz de um Deus a me amparar
como se ampara uma criança
enquanto, do meu carnal assombro,
me liberto da sombra que me encarcera
e canto a desimportância das horas
no imperecível momento de um verso.

--------

Conceitual
Gustavo Felicíssimo

Meu verso
nunca será livre
Será vivo
Pois ao poeta
     não cabe
o livre arbítrio
Meu verso
nunca será um grito
Antes, o silêncio
         com todos
         os seus ruídos
Nele, tão-somente
      o que pulsa
      o que se agita
      ou rumoreja
na folha alvíssima
     sobre a qual
     me debruço
     e padeço
Pois se o poema
     por inteiro
     me ofereço
cada verso será
sentido e delírio
Cada verso meu
será – mesmo –
um suspiro, apenas
E nada mais
Chega mais perto
leitor
          e ouve
o que nele habita

--------

Desordem
Gustavo Felicíssimo

Dois cães regem o homem:
            um, é tormento
            o outro, entusiasmo
Equilibrar esses dois cães
é questão de vida e morte
Dois cães
              quais
                        dois deuses
Qual deles será comigo hoje?

--------

"Outro chope, garçom
Sentimos sede porque a realidade é fuga
e fugaz o tempo se apresenta
Sentimos sede porque a realidade é crua
e terríveis os seus desdobramentos"


"Não sabemos das nuvens negras
             se faz sol lá fora
ou se enfrentamos nossa via-crúcis
navegando assim sem bússola
nos debatendo às portas da escuridão
e ainda sonhando cada vez mais alto
pois na memória esquecida
           os ausentes se confundem
fundem as vidraças dos velhos padrões
os velhos porões sucumbidos sob a noite
incerta de tantos escombros
            enquanto
nada muda a verdade no firmamento
ou dele se faz brotar evidências
o significado das coisas
e toda voz perdida sem saber o que dizer
           frente aos enigmas
que florescem diante da morte
esfinge do universo a igualar o ser"


"O que me exila me liberta,
lâmina que trago junto ao corpo,
faz vibrar as cordas de um violino
chamando os meus cães"



Presentes no livro "Desordem & outros poemas inéditos" (Mondrongo, 2015), de Gustavo Felicíssimo, páginas 43, 45-46, 61-62, 15-16 e 11, respectivamente, além dos trechos dos poemas "Elegia para Alberto da Cunha Melo" (p. 39), "Elegia para Rimbaud" (p. 34 e 35) e "Canção do meu exílio" (p. 49), presentes na mesma obra.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Dez passagens de Clarice Lispector no livro Laços de família

Clarice Lispector (foto daqui ) “A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo do orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver no armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve horror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felici...

Dez passagens de Jorge Amado no romance Capitães da Areia

Jorge Amado “[Sem-Pernas] queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores. Nunca tivera família. Vivera na casa de um padeiro a quem chamava ‘meu padrinho’ e que o surrava. Fugiu logo que pôde compreender que a fuga o libertaria. Sofreu fome, um dia levaram-no preso. Ele quer um carinho, u’a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa em volta de uma saleta. Em cada canto estava um com uma borracha comprida. As marcas que ficaram nas suas costas desapareceram. Mas de dentro dele nunca desapareceu a dor daquela hora. Corria na saleta como um animal perseguido por outros mais fortes. A...