Itamar Vieira Junior (foto daqui)
“(...) agora eu ando com esse vestido que é um trapo, vai se tornando uns fiapos, como se fosse nada, mal cobrindo meus seios, mal cobrindo meu sexo, vou andando com minha carne magra, que come caça, que come frutas mordidas por morcegos e pássaros, que pega escondido o milho das roças que vou encontrando no caminho, sempre sorrateira, para que não me peguem como eu pego o milho e me façam deles, como faço do milho meu, eu que não quero ser mais de ninguém, vou andando, vou comendo, vou tirando o que posso do meu caminho, só não consigo tirar as coisas de dentro de mim, cada filho que levaram, cada tapa e surra que levei do capitão, não consigo tirar de mim a morte de Inácio no barco com que os senhores se retiraram do engenho que perderam, não consigo tirar de mim os restos que eu comia, isso não consigo, nem o sofrimento de minha avó atravessando o mar, de navio, de onde jogavam os mortos na viagem como se nada fossem, sem interferência dos deuses a que rogavam, da justiça que clamavam em sua língua, a fome e a peste grassava no navio, minha avó tão forte resistiu diminuída, e de minha mãe eu não sei por que me tiraram dela como tiraram meus filhos de mim, eu fiquei com minha avó, e o meu pai eu não sei, meu pai pode ser qualquer um dos homens que cortavam o canavial e tinham as costas marcadas do chicote do capitão, meus pais tinham as costas marcadas e o sangue desceu de seus corpos para encontrar o chão, e eu, uma mulher, fui crescendo assim, nunca pude apagar de mim o sofrimento que não vivi (...)”
“(...) não deixaria para trás as lutas que travei em meu espírito contra meus senhores, as dores que carreguei longamente por minha vida, os filhos que se foram, Inácio debaixo d’água, carregaria tudo porque é tudo o que tenho, tudo que me trouxe até aqui, a este lugar, carregaria as feridas de minha caminhada, carregaria as luas que não pude contar, os dias que passei na estrada, sem cavalo, sem jumento para me carregar, andando eu mesma por vales e montanhas, com a fome companheira de todas as horas, a fome que me acompanhou por toda a vida, queriam que a entendesse na casa grande como dádiva de meus senhores, queriam que a visse dádiva do deus branco, o regalo do prato que me estendiam com os restos, que agradecesse ao deus deles, era uma fome muito grande, do corpo e da alma, de tudo que me tiraram, de tudo que não permitiram que tivesse, eu ali, deitada, amada por tudo que me cercava, amada, abençoada por todos os ancestrais, que sofreram atravessando o mar em navios, que morreram antes de chegar e foram atirados ao fundo d’água, comidos pelos bichos das águas, que ergueram roças de inhames na outra terra, a todos os guerreiros que guerrearam, a todas as conquistas que tiveram, a todas as derrotas que tiveram, os ancestrais estavam ali comigo, e deitaram comigo naquele chão, e sonharam com o amanhã (...)”
“(...) A porta, de soleira baixa e madeira antiga, foi arrombada. O avô foi empurrado pelos policiais que adentraram a casa num rompante de fúria. A mãe pediu pelo perdão ao filho, prometendo que ele não iria mais errar, que encontraria trabalho, levaria a vida que sonhou para ele. A vizinhança revoltada pelos assaltos que ele praticava servira-lhe de algoz. A mulher recebeu um soco e caiu no chão. O outro filho se escondeu na cozinha. Ele havia urinado em suas roupas e estava debaixo da cama de onde foi arrancado com brutalidade. Foi arrastado, chorava e chamava pela mãe. Ela gritava ao filho: ‘Meu Deus! Meu Deus!’. Colocado no porta-malas da viatura de polícia com violência, quebrou o maxilar. Assim, banhado em sangue, foi retirado trezentos metros à frente, no mesmo campo de futebol em que jogava na infância e que vivia nas lembranças de Doramar. Do camburão, navio negreiro, foi jogado ao chão; ‘treze tiros, enquanto uma bala só bastava, o resto era prepotência, era vontade de matar’. O que terá ele pensado nesse instante? Talvez desejasse voltar pra casa e trocar a roupa molhada. Talvez ainda pensasse na vida, num trabalho de limpador de chão ou mecânico de automóvel.”
“(...) Somos as mulheres que lavaram as pesadas cortinas da igreja para que a casa de Deus estivesse sempre impecável, que fizeram orações para os ricos e os pobres, sem que ninguém se desse conta de que, para que aquelas cortinas estivessem tão alvas refletindo a luz, mulheres precisaram dar seu tempo de vida, enrugaram suas mãos, ressecaram-nas com sabão, queimaram-nas com o ferro e o braseiro, e, mesmo assim, não éramos lembradas nos dias especiais quando as boas famílias recebiam cumprimentos do sacerdote ou as mulheres de sobrenome eram louvadas por seus gestos de benevolência, quando davam uma moeda de suas riquezas. Sempre fomos colocadas por Deus e pelos que falam em seu nome em segundo plano, como servas secundárias, sem brilho próprio, sem direito a reverências.”
“Atravessamos oceanos há séculos, através das águas, partindo do continente do lado de lá. Partimos de muitas terras. Partimos de muitos lugares, de diferentes cores, de diferentes vozes, de diferentes falares, por diferentes ondas, de terra e de mar, de florestas e de savanas, de planícies e de montanhas. Partimos muitas vezes acompanhados de multidões, partimos em pequenos grupos, mas quase sempre partimos conosco. Partimos para fecundar a América. Viajamos o Atlântico, viagem nunca querida, quase nunca sonhada, mas quase sempre necessária. Deixamos histórias, carregamos histórias, tudo o que o trazemos é o que pode ser comportado em nosso espírito, para que nossa terra não se acabe, para que floresça e seja presente, para que, quem sabe, daqui a alguns anos ou séculos, possamos retornar e refundar nossas vidas, unir os fios partidos e caminhar sobre as águas.”
“O corpo repousa, as asas se fecham nas mãos do pai. Os pés estão amarrados. A respiração ofegante, da galinha e do menino, ritmada pela espera, audível desde a casa em que a mãe observava. A panela de água aquecia no fogão a lenha. O pai entrega as asas do animal ao filho-que-olha-assombrado, enquanto por trás do filho-carrasco apruma o machado a uma altura para que sua tarefa tenha o êxito esperado. ‘Desce o machado sobre o pescoço’. O menino, mesmo sob o sol forte do meio dia, sente uma corrente de ar frio percorrer seu corpo: teme ferir as expectativas de seu pai, severo no seu intento de educá-lo. ‘Não tenha pena. Senão ela não morre’. ‘Não tenha compaixão, senão ela sairá viva com o pescoço degolado’. Em pensamento, as palavras que o filho não podia ouvir: ‘Execute sua tarefa, meu filho, porque dela será feito o seu futuro e o de sua descendência’.”
“(...) A importância do ofício residia na virtude de servir ao país de forma irrestrita, da coragem de interromper maus feitos, distúrbios, ações que atentassem contra a ordem, contra o equilíbrio que sustentava a multidão e seus líderes. Carregar a corda era afastar a possibilidade das turbas, da desordem, do sofrimento. Era afastar as respostas que não podem ser dadas às perguntas que podem levar à ruptura. ‘Por que o céu é azul?’. ‘Por que o sol nasce ao leste?’. ‘Por que o vento levanta as folhas?’ Cada pergunta guarda a possibilidade do despertar. Cada pergunta pode carregar a possibilidade da mudança. De pergunta em pergunta as coisas fogem do controle.”
“(...) Suas palavras nunca morrerão, e mesmo que estejam hoje proibidas, serão as sementes que se guardam por anos em garrafas com areia para que a praga não as coma, mas que em terra fértil se reproduzem e se fazem coisas novas. Suas lágrimas lavarão sua face da poeira interminável que por vezes se faz tempestade seca. Nossas vidas serão compreendidas como vidas. Não se abaterá sobre nós a loucura, e muito menos a completa lucidez, para que não sejamos aprisionados pelos extremos dos sentimentos. O equilíbrio não será a virtude a nos encarcerar na mediocridade. Piedade. No último instante, você fechará seus olhos para que seu corpo se volte para o que é importante. Instante. Sem vagar nos rostos e na escuridão da madrugada, ou nas luzes que nos permitirão prosseguir.”
Trechos presentes no livro de contos A oração do carrasco (Mondrongo, 2017), de Itamar Vieira Junior, páginas 21-22, 37-38, 141-142, 61-62, 112, 70, 75-76 e 84, respectivamente.
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