Paulo Bono (foto: Vinícius Xavier)
“(...) Um angustiante pensamento passou pela cabeça. Eu precisava ir aonde ninguém jamais passa ileso. O destino de todo veículo roubado no país. Onde irmão passa a rasteira em irmão. Onde é possível encontrar um Iphone feito com peças de Uno Mille. O único lugar onde é possível achar o novo livro do Paulo Coelho que ele ainda não escreveu autografado. Onde a palavra vale tanto quanto um 12 anos produzido com Tubaína. Onde assassinos, políticos e sequestradores não passam de meros estagiários. Eu precisava ir a Feira de Santana.”
“Uma das vantagens de trabalhar em casa. Ficar longe das pessoas. Manter distância dos egos inflados, mentes inoperantes e verborragias improdutivas podia ser o pulo do gato. O que chamam por aí de Home-Office, eu chamo de paz. Por isso lá estava eu, um veterano redator, sozinho com sua paz, pronto pra um novo job. Sexy Ugly. Liguei o monitor. Tela em branco. Como vender um puteiro? Tudo bem que era pra clientes bizarros ou traumatizados, mas não deixava de ser um puteiro. Fazia uma lua bonita. Engraçado, nunca fui de admirar a lua. Nem a lua, nem as montanhas, essas coisas da natureza. Falam sobre a presença de Deus. Eu só escuto o sorriso de Deus quando acaba o papel higiênico. Aí sim, você fica com a cara de lua. Aliás, como seria trepar na lua? Digo, essa coisa da gravidade. Foco, Deco Ramone.”
“— Ramone.
— Vivian.
— Já amou alguém?
— Todos pisam na bola algum dia.
— Você é um desses durões que não acredita no amor?
— O amor é uma loja de conveniência. Só que mais caro.
— Você apenas amou as pessoas erradas.
— E se não existirem as pessoas certas?
— Talvez. Mas preciso te contar uma coisa.
— Sou ouvidos.
— Orlandinho acha que eu o traio.
— Mas quem não trai hoje em dia, não é verdade?”
“(...) Sim, as coisas caminhavam bem. Caminhavam tão bem que tivemos uma garotinha e Lúcia me deixou colocar o nome da cantora mais foda que já existiu. Sim, eu era Deco Ramone. Redator sênior de uma grande agência, com uma linda mulher e uma bela garotinha. Tudo dentro do roteiro. Meus velhos ficariam orgulhosos.
Mas como eu ia dizendo, eram mais ou menos duas da manhã e eu procurava por Lucia naquela que talvez tenha sido a última grande festa da propaganda na cidade. A agência tremia, cabeças acesas e embriagadas. Procurei em cada canto, corredores, salas, estúdio, cozinha. Foi nos fundos da agência que encontrei Lúcia dando pro Duda Reis, o queridinho da W9. Pela altura e angulação do negócio, rolava cu na parada.
— Porra, preciso mesmo de um beque — eu disse.
Eles se assustaram, mas não interromperam o movimento. Lucia só deu um sorriso, meio sem graça, meio de dor e disse:
— Ele ganhou Cannes!”
“Lembrei da geladeira vazia e resolvi passar no supermercado. O lugar já estava infestado dos malditos panetones. Bem, um carrinho de mercado diz muito sobre uma pessoa. O meu tinha pão, mortadela, ovos, limão, papel higiênico e cerveja. Ao lado das cervejas, havia essa placa com uma gostosa de saia curta. Sexo ainda era o espirito do negócio. Talvez pra nos fazer esquecer de uma vida monótona e brochante. E se ampliássemos a estratégia? Xotas estampando rótulos pra cada fragrância de desodorante, peitos em caixas de leite longa vida, bagos em embalagens de lasanha congelada, cus em rótulos de cereal e frascos de amaciante ilustrados com caralhinhos voadores. Seria uma revolução do varejo.”
“— E aí, gatão — disse — não quer me mostrar o que tem dentro dessa calça?
— Trabalha aqui há quanto tempo?
— Você é polícia, cara?
— Estou só fazendo amizade.
— Ah, tem uns dois anos.
— Já apareceu algum aleijado por aqui?
— Como assim aleijado?
— Algum capenga, um doente, um cego, sei lá. Já deu prum anão, por exemplo?
— Ah, de vez em quando aparece uns esquisitos.
— Esquisitos?
— Você sabe, um que não tem uma perna, outro que o pau não sobe. Tem os gordos também que é sempre complicado.
— Qual foi o caso mais bizarro?
— Ah, tem um cara que só goza se eu enfiar um Prestigio.
— O quê?
— Ele até trepa bem, mas na hora de gozar pede pra eu enfiar um prestígio no rabo dele.
— Prestígio, o chocolate?
— Inteiro.
— Se for um Chokito ou um Lolo?
— Só serve Prestígio.”
“— Acredita que o cliente ainda não liberou aquela verba?
— Cacete...
— Os caras são escorregadios.
— Como é que a gente fica?
— Me ligue na sexta. Acho que a águia pousa na sexta.
— Maxwell, tem três meses que a águia tá voando.
— Você é parceria.
Desliguei na certeza de que parceria de cu é rola. Mas aquele era meu jogo. Eu era um velho freelancer que apostava alto na liberdade e pagava o preço de nunca saber o que ia acontecer no fim do mês. Eu não tinha cartão pra bater. Não tinha chefe, diretores, analistas, coordenadores ou palhaços me dizendo como cagar sobre a mesa. Por outro lado, nada de contracheques. Apenas a corda bamba, o risco absoluto de toco e nenhum sinal da águia por longos dias.”
“— Falar nisso, acabei de criar um filme do caralho.
— Genial.
— Cannes na certa.
— Genial, genial.
— No mínimo, prata.
— Cara, eu queria muito esse estágio.
— Tem que ralar, moleque.
— Estou pra jogo.
— A porra aqui não tem hora.
— Não tenho relógio.
— Preciso de sangue no olho.
— Meu nome é ódio.
— Estou falando de Cannes.
— Você é gênio.
— Acha mesmo?
— Um ídolo.
— Pode começar amanhã?”
“Deixei a sala de Big, voltei pelo corredor e pude escutar as entranhas da agência. Era o mesmo som de todas as agências. Dedos metralhavam teclados, almas pediam penico, grunhidos do tempo, xícaras em mesas de reunião. Nada muito diferente da minha época. Quer dizer, Big disse que agora a criação vivia repleta de pagodeiros, diretores de arte fãs de Romero Brito, redatores que juravam que Schopenhauer era o camisa 8 da Alemanha e que ninguém mais usava drogas. Apenas trabalhavam das nove às dezenove. Nenhuma fumaça de pensamento. Nenhuma dança. Eram apenas operários. Só precisavam fazer o que era mandado. Mas ainda assim peões de luxo. Afinal trabalhavam na Tancredo Neves em salas com ar condicionado e cadeiras giratórias.”
“— Porra, Deco — disse — se eu perder esse emprego vou ter que dar a bunda pra pagar meu condomínio.
— Segure o cu, meu velho. Vai dar tudo certo.
— Vão tirar um de nós. Dois redatores com mais de 35, a Morte não vai deixar.
— Vão precisar de gente experiente pra segurar a onda.
— Com meu salário, eles pagam dois moleques de fralda pra fazer memes.
Coruja suava. Eu olhava em volta e via as cabeças baixas. Rezavam, olhavam pro telefone, Dona Irene do cafezinho desmaiou na copa. Seria mesmo difícil La Muerte segurar dois veteranos. Eu tinha Nina. Mas o Coruja tinha três garotos. Pensei em adiantar o passo, pedir demissão e garantir a vaga do meu velho amigo. Uma Atendimento atravessou a sala aos prantos. Quando o telefone tocou. Do Coruja. Ele simplesmente baixou a cabeça por alguns segundos, atendeu e se levantou. Foi como um soco no estômago. Mais uma vítima de La Muerte. Então caí na cadeira. Me sentia exausto e as coisas seriam piores dali pra frente. Talvez fosse o fim do Coruja. A propaganda baiana tinha algo dos Menudos. Como se depois dos 30, você perdesse a validade. Não importa quantas vezes salvou o jogo virando noites e limpando cagadas. Talvez Coruja virasse mais um tiozinho criativo a viver por aí batendo nas portas e relembrando o passado. Olhei pro mar e senti vontade de um Nescau extra cremoso. E de repente, meu telefone tocou.”
Presentes no romance “Sexy Ugly” (Mondrongo, 2019), de Paulo Bono, páginas 34, 33, 53, 95-96, 48-49, 70-71, 14, 27, 30 e 109-110, respectivamente.
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