Maviael Melo (foto daqui)
“(...) Que estranha mulher era esta no seu banheiro, na sua frente, a lhe interrogar o tempo, mostrando-lhe curvas no rosto que não reconhecia, trazendo no olhar um sinistro de seguro vencido e marcas de um passado ainda não vivido, lembranças nos lábios de beijos nunca sentidos e uma secura no paladar de uma fome milenar, junto a um amargor de vidas degustadas por entre noites insones, onde nunca tivera estado?”
“Ela, a garota ruiva, deve ter corrido uns dois quilômetros atrás do carro da guarnição da polícia na tentativa de salvar o pai. Pela estrada, ofegante, ela via as pessoas por detrás das janelas. Mesmo não vendo a cor dos olhos, nem a cara, nem cabelos, sabia que as pessoas estavam ali, escondidas, vendo a polícia carregar o pai alemão. Por dentro sentia uma sensação estranha, que lhe fervia a pele, que doía os ossos e avermelhava os olhos. Somente anos depois soube que era ódio que sentira enquanto corria atrás do pai. Ódio pela omissão das pessoas, que fingiam gostar do alemão, que fingiam ser alegres com aquele sotaque entre gago e fanho. Ódio pela inveja de alguns que, pelas frestas das janelas, olhavam a cena e achavam pouco, pois não aceitavam que alguém, vindo de uma terra tão distante, pudesse chegar aqui e ter um emprego melhor que o seu”
“O falecido era conhecido por todos como o Velho Bode, por ter vindo do interior, ainda adolescente, para morar com um tio (...) Gostava de contar que vinha de um lugar chamado Escondido e que ficava num pequeno povoado lá pras bandas da Bahia. (...) Falava que tinha um velho amigo do pai, conhecido por todos da região, seu Pedro, que sabia muitas histórias sobre vaqueiros, cangaceiros e rezas. Fabricava um rapé à base de mastruz e cânfora, que segundo ele, servia pra tudo. O Velho Bode sempre trazia um pouco do rapé para turma da capital. (...) Ficava com o olhar encantado quando falava das paisagens entre o povoado do Escondido e o Logradouro do Juvenal, das figuras que encontrava nos botecos e nas veredas por onde passava, nas estradas da região. Ria, quando falava dos primos que, juntamente com ele, faziam farras homéricas pelas paragens daquele sertão e se divertia ao lembrar do velho Frederico, um grande contador de histórias que falava mais que o homem da cobra e que inventava palavras”
“(...) Bob, o conselheiro de Deus, chegou trazendo uma pedra amarela e entregou a Ele, que, na mesma hora, já estava desenhando a Lua e algumas estrelas. Sentado na pedra amarela, Deus continuou procurando o que fazer para passar a lombra. Comeu uma banda de melancia pra aliviar a larica e fez os oceanos. De vez em quando, Bob lhe trazia umas flores e Ele ia ‘arrodeando’ os mares. A noite já ia pela madrugada quando, do nada, um velho parceiro de Deus chegou na roda. Nesse momento, Bob já tocava um som que ele mesmo tinha criado e chamou de reggae. Deus deixou que ele colocasse na Jamaica, o lugar destinado a Bob. Pelo adiantar da hora, Ele já tinha criado as Américas, a Ásia e a Oceania. Ainda entediado, Deus sabia que estava faltando alguma coisa pra completar a noite. Foi aí que o parceiro de Deus, que tinha bebido um Aioasca, disse que viu, em algum lugar no caminho, uma roda e foi aí que Deus decidiu que a Terra não seria plana”
“(...) Naquela noite, na casa da menina, uma reunião definia a vida de algumas pessoas ali presentes, entre elas, os pais e o tio, dois jovens jornalistas recém-formados que faziam bico no Diário Matutino, uma enfermeira e um artista plástico de meia-altura com nome de Ananias, que tinha um ateliê perto da Rua da Alfândega, onde dava guarida a jovens revolucionários e sonhadores. Depois da reunião, quando chegou ao ateliê, foi pego de surpresa pela polícia investigativa das forças armadas. O seu ateliê estava totalmente destruído e um cheiro de gás crescia com o decorrer do tempo. Foi algemado pela mão esquerda a uma pilastra próxima à cozinha, de onde exalava o cheiro forte de gás. Quatro homens encapuzados e com máscaras de gás conversavam entre si enquanto outros dois o torturavam com pontas de cigarros, querendo nomes e endereços. O jovem escultor nada dizia e o cheiro de gás o entorpecia. Sabia ele que dificilmente sairia vivo daquela noite (...) Entendia a importância do movimento de que participava e isso lhe dava forças para não ceder às torturas e jamais deduraria seus companheiros de luta”
“O movimento das pessoas, em dia de pagamento, era sempre intenso, como em todo e qualquer lugar — coisa que sempre a irritava (...) não era dada a passeios e nem a amigos. Portanto, sair de casa era sempre uma atividade que lhe cansava muito. O contato com as pessoas, o tocar dos braços nas ruas cheias, as conversas entre os transeuntes, o cheiro de pinga, os pedintes, o vai e vem de um e outro, os gritos dos meninos procurando seus trocados, os rapazes que se enturmavam pelos cantos à procura de algo pra garantir mais uma dose de pinga ou mais uma partida de bilhar, as mulheres da antiga casa de massagens nas calçadas, oferecendo os serviços e as moças panfletárias a poluírem a rua com centenas de panfletos da loja de artigos pessoais e dos consultórios odontológicos oferecendo sorrisos milagrosos, tudo isso, juntado ao calor escaldante daquele sertão e ainda a sua pouca disposição para lidar com gente, era mais que suficiente para saber que nesses dias ela era, de longe, o ser humano mais insuportável de toda uma América. Mas nem sempre fora assim”
“(...) Uma sombra fria cobria os céus e ela sentiu medo e dor. Viu um homem enganando os homens, outro enganando a si. Observou uma manada de desgovernados com bandeiras de desigualdades, querendo a volta de um regime militar e sentiu pena. Ouviu discursos de ódio e contra a formação dos pensamentos filosóficos e políticos. Homens querendo se armar, mulheres rezando a um Jesus na goiabeira, orientando outras recatadas e do lar. Discursos contra a cultura, de restrições de direitos e de racismos institucionalizados. Viu ainda, um pobre moribundo querendo pular de uma ponte sem rio e outros rindo da própria pobreza. Velho e velhas, negros e negras, índios e índias, brancos em bancos e, por fim, em uma praça sem cor e sem vida, homens de preto, falsos justiceiros, em togas e fraques, fracos de alma, a lamber botas de um galego desengonçado que não sabia falar direito e cuspia ao falar. Entre eles, um autodeposto, que fingia flexão e corria dos debates; um traumatizado tradutor de libras fazendo malabares, sem saber o que diziam e nem como expressar tanto despautério”
Presentes no romance “O espelho dos girassóis” (2020), de Maviael Melo, páginas 20, 33, 82-83, 101-102, 43-44, 19 e 122-123, respectivamente.
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