Pular para o conteúdo principal

Seis sonetos de Cyro de Mattos no livro O discurso do rio

Cyro de Mattos


Da amizade partida
Cyro de Mattos

Amigo é quem nunca esquece a sede, a fome
de muitos no rio efêmero da vida.
Põe no prato o peixe, na talha água pura
e nunca espera nada de volta. Tudo

dá com sobras, areia para argamassa
das casas, a corredeira para a roupa
ser lavada, o peixe para o homem vender,
o sol admirando-se nos mil espelhos

que espalhou perto de clarear o dia,
a lua no areal derramando prata,
o balé de borboletas nos barrancos.

Nunca quem passa ligeiro, não querendo
saber desse esgoto onde me jogaram
sem remorso para eu morrer aos poucos.

--------

Do esgoto a céu aberto
Cyro de Mattos

Ficou claro que as lavadeiras, quando
botavam as roupas para secar,
coloriam as inúmeras pedras
pretas, levando emoção a quem visse.

A cidade sabia que a argamassa
das casas era feita duma fibra
especial: calo, suor e areia.
O peixe fabricava o pão da vida.

O aguadeiro anunciava a água fresca
com uma voz cristalina. O visual
de tão lindo parecia sem fim.

Ficou claro que, de tanto no ventre
virar lodo, o espetáculo envergonha.
Eis que escorre no esgoto a céu aberto.

--------

Das mãos na goela das águas
Cyro de Mattos

Venho sendo omisso pra refazer
virginais caminhos de água, dizendo
melhor, matei o que era para ser
vivo no seu amanhecer líquido.

Eu me acuso por ser indiferente
ao benefício, sempre abundante,
de água pura que jorrava na fonte,
peixe e rede no orvalho competente.

E como réu confesso que merece
por tão grave delito ser punido,
chegando do que lhe foi natural,

em noite morta, que nunca apetece,
lavro minha sentença, condenado
a viver no abismo do que há no Mal.

--------

Dos remorsos
Cyro de Mattos

Escuto vozes. Como acreditar?
A mancha nas águas a envergonhar
diz da fuga em desespero, tingida
a manhã do horror na taba queimada.

Por entre sombras do que não se apaga
escorre a dívida que não se paga.
Remorsos não existem nas entranhas
dos que chamam as cenas de façanhas.

A mancha na mágoa que flutua.
De rio que chora. Chacina ecoa
nessa triste música. Escuta a lua.

Saberá quantos ventos entoam
os feixes de lamento que guardam?
Na água, feridas vozes machucam.

--------

Dos rumores e afagos
Cyro de Mattos

Sai do olho. Desce no fio.
Terra come. Nuvem bebe.
Muda a pele. Vira cobra.
Cai na pancada formosa.
       
Inunda. Derruba. Afoga.
Assombra. A barriga murcha.
Bicos alegres surgem.
No dorso trissam. Triscam.

Tecem fios de ouro e prata.
Andorinhas, andorinhas.
Sutil carícia voa.

Despede-se. Esquece o doce.
Urina o mar. Não me deixa.
Tão ser, tão pedra, tão água.

--------

Do sol aceso no peito
Cyro de Mattos

Grudou na pele tudo que passou,
Foi lá onde pulsou o coração.
Verdades muitas que foram guardadas
são ternuras de um local esplêndido.

Cada salto era melhor do que o outro,
a disputa coloria o domingo.
Cumpria os deveres do colégio,
era preciso estudar pra ser gente

mas quando nadava no rio tinha
a nota máxima com a flor do sol
acesa no peito. De pedra em pedra,

ultrapassava os poços mais profundos.
Trunfo do amor a cada travessia.
Ganhar e perder risos rendiam-me.


Presentes no livro de poemas “O discurso do rio” (Palimage, 2020), de Cyro de Mattos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: R.E.M.

Foto: Chris Bilheimer A “ Seleta: R.E.M. ” destaca as 110 músicas que mais gosto da banda norte-americana presentes em 15 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Out of Time ”, “ Reveal ”, “ Automatic for the People ”, “ Up ” e “ Monster ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 15 álbuns participantes desta Seleta 01) Losing My Religion [Out of Time, 1991] 02) I'll Take the Rain [Reveal, 2001] 03) Daysleeper [Up, 1998] 04) Imitation of Life [Reveal, 2001] 05) Half a World Away [Out of Time, 1991] 06) Everybody Hurts [Automatic for the People, 1992] 07) Country Feedback [Out of Time, 1991] 08) Strange Currencies [Monster, 1994] 09) All the Way to Reno (You're Gonna Be a Star) [Reveal, 2001] 10) Bittersweet Me [New Adventures in Hi-Fi, 1996] 11) Texarkana [Out of Time, 1991] 12) The One I Love [Document, 1987] 13) So. Central Rain (I'm Sorry) [Reckoning, 1984] 14) Swan Swan H [Lifes Rich Pageant, 1986] 15) Drive [Automatic for the People, 1992]...

Flikids 2024

A Flikids é uma festa dedicada ao universo da criança, que surge para valorizar e destacar a literatura infantil, produzida por adultos e autores mirins, bem como outros artistas que trabalham a interseção das artes com a literatura, para promover espetáculos infantis e oficinas que estimulem a formação de novos leitores e o hábito da leitura como lazer e afinidade entre os membros da família. Nos eventos literários pelo país, geralmente a programação para crianças é apresentada como uma das partes dos eventos, alternativa. Já a Flikids é exclusiva para esse público: destaca a produção da literatura infantil nos seus vários formatos e temas, como programação principal. A 1 ª edição da Flikids acontece em 19 e 20 de outubro na Caixa Cultural Salvador , patrocinada pela Caixa e Governo Federal , com a realização da Bahia Eventos e  Mirdad Cultura , coordenação geral de Emmanuel Mirdad e curadoria de Emília Nuñez e Ananda Luz . As curadoras comentam a programação  aqui ...

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão...