Alberto da Cunha Melo (1942-2007)
Secretaria da Educação, 2006
Alberto da Cunha Melo
A mesa da moça tem um jarrinho de avencas,
um pequeno globo terrestre,
uma microcalculadora, tudo de plástico.
Ah, numa bandeja de madeira, escrito: despachar,
estão uns dez processos, já autorizados,
de melhorias salariais.
Estão ali, julgados, para apenas serem implantados
pela moça atrás da mesa.
Alguns já estão amarelecidos
pelo longo tempo ali chegados.
Entre estes está o processo de Agápito,
funcionário velho, de câncer avançado.
Seu vergonhoso salário
estaria, de acordo com a Lei, aumentado em 50%
como foram os de seus colegas, há cinco anos.
Mas, a moça só implantará o aumento
se advogados e procuradores a ameaçarem,
e Agápito não conhece esses homens.
Sua miséria engorda a autoridade da moça,
mesmo que ela nada saiba sobre ele.
Vocês estão diante do Mal a varejo,
do numeroso e onipresente Mal,
nos balaios, nas prateleiras do dia a dia.
A gana de poder, de autoridade,
tem de ser saciada no próximo, dentro de casa,
na rua, no escritório, na oficina,
entre presos, nas celas, e entre mendigos nas pontes.
Agápito não tem mais força para lutar
contra o poder, contra a autoridade da moça,
cuja vontade nega o Direito a dez homens,
reduz em dez mesas a comida, e em dez camas, o sossego.
O Mal não é um efeito especial de Guerra nas Estrelas.
O Mal tem a cara de uma moça atrás de uma mesa.
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Limites do corpo
Alberto da Cunha Melo
1º
A obrigação
de ser belo
é incompreensível para o corpo
que busca apenas respirar
e erguer-se todas as manhãs.
2º
Um corpo
é demais:
tão completo
para sentir e chorar
todas as coisas,
tão vivo
e ameaçado
para jogar-se totalmente
nas águas soltas da alegria.
Um corpo é pouco
para tanta certeza
de sofrimento.
3º
Por que nos deram
tantos nervosos terminais?
Para que tudo,
tudo nos atinja?
Para que nenhuma dor
ou alegria
passem desapercebidos?
Para que um sonho,
uma chacota,
um tiro
possam derrubar-nos?
Por que não somos
menos perfeitos
e mais felizes?
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Egoísmo na medida
(Recife, 21/07/83)
Alberto da Cunha Melo
Da dor humana,
só conheço a minha,
que não é nada
para os outros
e insuportável para mim.
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Depois de ler Alan Watts
(Para Jomard Muniz de Britto)
Alberto da Cunha Melo
Temos, realmente,
grandes problemas metafísicos
como o de encontrar
a finalidade última
de uma vida feita
de tanta coisa relativa;
como o de encontrar
o sentido da morte,
tão rotineira e definitiva
em seu jeito de fósforo
riscado, entre noites sem fim;
como o de encontrar
a segurança de todos
sem sacrificar
a segurança de cada um;
mas, por enquanto,
fiquemos aqui,
neste problema tão pequeno
rasteiro, insignificante,
de distribuir a terra e o leite
entre aqueles que só precisam
de terra e leite, por enquanto.
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04
[Pequenas confissões]
Alberto da Cunha Melo
Um ex-amigo me disse
que a experiência
é, às vezes, puro vício;
a partir de então,
juntei mais uma falha
a meu extenso prontuário,
e estou louco para errar
como qualquer aprendiz:
não é fazendo o que sei
que chegarei
às descobertas que não fiz.
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A ordem dos fatores
Alberto da Cunha Melo
Se tem o andar do louco
a voz do louco,
o sorriso do louco,
é poeta.
Se tem o andar do poeta,
a voz do poeta,
o sorriso do poeta,
é louco.
Relógio de ponto
Alberto da Cunha Melo
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.
Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas, com o verniz das estrelas.
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Neste incerto lugar
Alberto da Cunha Melo
O essencial é assustadíssima
e soberba ave, como um galo:
só duas mãos, dentro da treva,
sem ruído, podem pegá-lo,
ou surpreendê-lo nas ruínas
do ser, nas vazadas retinas
dos natimortos, nos verões
sem fim da terra saqueada,
onde os que tiram nada põem,
onde uma vida, por mais breve,
dura sempre mais do que deve.
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Aparentemente bem
Alberto da Cunha Melo
Ontem, encontrei-me, por acaso,
com velhos amigos e velhas amigas.
Eles estranharam minhas respostas
às suas simples perguntas, abraçando-os.
— Como vai você? Perguntaram-me, um a um.
— Aparentemente bem, respondi-lhes, um a um.
Às vezes, ser verdadeiro é ser uma forma de ser estúpido,
como o foi um jovem japonês nos EUA
que respondeu à pergunta — How are you?
com uma descrição de suas cólicas intestinais.
Acredito que, ontem, minha estupidez
foi maior que minha fatuidade.
Ninguém quer mais
do que uma simplicíssima resposta:
— Vou bem, obrigado.
Ninguém quer saber, sequer suspeitar
que cortaram a água de sua casa, a energia elétrica,
o crédito, e que só resta meia dúzia de ovos na geladeira.
Quando o amigo, mesmo o mais velho, pergunta-lhe: — Como vai?
— Bem, responda sempre assim.
E sabe por quê?
Porque todos os seus amigos
sabem que você vai aparentemente bem,
e até admiram a extensão de sua desgraça,
mas já estão cheios de saber que você vai mal.
Não perca seus novos ou velhos amigos,
para eles e para o mundo,
diga apenas que vai bem, obrigado.
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Atletismos
Alberto da Cunha Melo
Como se um fosse
o mar do outro,
nadamos os dois,
a metade da noite,
um no corpo do outro,
e ficamos, depois,
tão calados e imóveis,
feito marés vazantes
a esperar, um do outro,
a primeira onda,
para, um no outro,
de novo mergulhar.
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29
[Pequenas confissões]
Alberto da Cunha Melo
Os raros não se confessam,
têm seus biógrafos
e, quando vivos,
podem dar-se ao luxo
de ser objetivos;
como sou gente,
tenho medo
de ser diferente:
sou tão comum,
que quando falo de mim
falo de qualquer um.
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Autocrítica
Alberto da Cunha Melo
Não sofro porque erro:
sofro porque possuo
a triste faculdade
de nunca perder de vista
cada erro que pratiquei.
Sofro porque meu erro,
com suas lâmpadas quentes,
é quem primeiro me castiga.
Sofro porque o mundo,
que chega sempre tarde,
comete o erro
de ainda me castigar,
de novamente castigar-me.
Conversa com Fernando Pessoa
Alberto da Cunha Melo
Aqueles para quem
realmente escrevo
não me lerão
ou compreenderão jamais.
Os que me leem
são apenas
variações de mim,
pedaços meus que me aplaudem
pensando aplaudir alguém
diferente de mim.
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Chiste ateu
Alberto da Cunha Melo
É bom ser Deus
este sádico:
que cria bichinhos
para vê-los morrer.
É bom ser Deus
que consegue, há milênios,
olhar tudo isso
sem chamar um anjo
para enchê-lo de vinho,
sem jogar-se (envergonhado)
no éter
e suicidar-se
outra vez;
por nós
ou como nós.
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Essas velhas surpresas
(Ao padre e líder Romano Zufferey)
Alberto da Cunha Melo
Fora do fogo,
não há saída:
porque fugir
é a pior
maneira de ficar.
Teus escuros
e falsamente apodrecidos
pedaços
envenenarão os abutres:
isso ainda é lutar.
Fora da luta,
não há descanso merecido
não existe despertar.
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Burocracia
Alberto da Cunha Melo
A Burocracia queima as folhas e as manivas de mandioca
e faz o gado mugir de sede na escuridão.
A Burocracia impede o desembarque dos lírios
no porto coberto de moças mortas.
A Burocracia faz o prazo dos remédios vencer
e aumenta sob o sol a fila dos condenados.
A Burocracia reduz o benefício dos inativos
e sucateia as próteses e as cadeiras de roda.
A Burocracia não deixa a água subir os morros
e apaga os postes nas ruas sem pavimento.
A Burocracia não traz o berço, a comida, e o bujão de gás,
nos lares de geladeira e almas vazias.
A Burocracia demite o recém-casado e o patriarca,
deletando o destino na tecla do computador.
A Burocracia estupra Cristina, de quinze anos,
a estrelinha apagada com um jato de esperma.
A Burocracia desova, no canavial, o cadáver de Pedro,
com seis balas no corpo e dois cigarros de maconha no bolso.
A Burocracia faz as peças de renda da artesã
afogar-se na Alfândega, não seguir para Milão.
A Burocracia faz do Banco a imagem e semelhança de Lúcifer
e o inimigo público número um.
A Burocracia mata as cabrinhas do sitiante
e apodrece o pau-d’arco que marcava seu sítio.
A Burocracia é a Árvore do Bem e do Mal
e induz ao remorso de Raskolnikov e ao suicídio de Ofélia.
A Burocracia é a refinada peçonha dos sádicos
e sua mais sórdida e persistente conspiração.
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Ritual do espancamento
Alberto da Cunha Melo
Espancado para aprender
a espancar
e ser espancado,
espancado em nome de Deus
ou de um jarro quebrado,
espancado para falar
e calar
o próprio espancamento.
Espancado para aprender
que os homens aprendem
espancando e sendo espancados,
espancado para dizer
que não foi espancado,
espancado para morrer
pensando que o mundo
está povoado
de espancados que espancam
e espancadores espancados.
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Amanhãs
Alberto da Cunha Melo
Quando acordar
é despertar asfixiado,
com as unhas do sol
enterradas na garganta,
nem as coxas, largas avenidas,
da mulher encantada,
nem os gritos flavos
dos escolares na calçada,
nem a proximidade das férias
nas estações balneárias,
nem as subterrâneas inchações
das veias do amor
nos dão vontade de acordar.
Tuas veias puladas
são raízes
estourando as calçadas,
pois já começa a entardecer,
e os rios de dentro
atingem o pique
de suas enchentes,
e o mar de fora
é uma só solidão.
Compromisso
Alberto da Cunha Melo
De boa vontade mesmo
só atendemos nossos vícios
ou nosso desejo de vingança,
quando há toda uma jaula
a ser explodida;
quando é pela recusa
dolorosa e diária
que poderemos exigir
a transformação disso tudo;
quando é pela renúncia
do prazer passageiro
que instauremos nos outros
alguma coisa permanente.
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IX
[Poemas policiais]
Alberto da Cunha Melo
O policial, orgulhoso
de matar a tiros
ou espancar seus “monstros”,
leva a filhinha
à carroça de pipocas;
tem, no bolso,
a carteira de agente
de primeiro nível;
tem, no coração,
o elogio do chefe
e da mulher,
está pleno, apesar de pobre
(dos honrados);
não foi ele quem fez
esta merda de mundo,
que mais “essa porra”
diz ele,
de Justiça quer?
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Toda vergonha de viver
Alberto da Cunha Melo
Agora, o vale-tudo:
as uvas para mim
e o abismo para todos
porque, de tão complicado,
a sabedora virou
meu túnel sob o cárcere;
e eu não queria,
por amor, ou resto rasteiro
de rasa humanidade,
pelo mais diplomata
e camuflado medo,
dizer que, apesar da vida,
queria, mesmo,
era (que vergonha!) viver.
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Análise da calúnia
Alberto da Cunha Melo
A calúnia, mal maior, maior crime da palavra humana.
Caluniar um vivo é arrancar-lhe a pele da dignidade,
aleijá-lo e despi-lo na calçada.
Mas, caluniar um morto é emporcalhar o céu,
partir em pedaços o infinito,
afundar, a martelo, a eternidade.
Como remover essa marca na testa?
Depois de marcada a ferro em brasa,
a rês amada do rebanho
fugiu: a que rebanho pertencerá?
Mergulha o rosto nas mãos
e pede, em vão, todas as mortes,
ou vai bater de porta em porta, a proclamar,
sem convencer, sua inocência.
O caluniado termina acreditando na calúnia,
e a andar pelas enfermas avenidas,
arrastando, com trapos, a sua vergonha
pelo mal que jamais cometeu.
Só os mais jovens, desenhando horizontes,
passam rindo e cegos pelo seu aleijão.
Vem-lhe a vontade de arrancar os membros,
um a um, como se algum deles
pudesse levar para longe a marca maldita.
Matar o caluniador não mata a calúnia,
acrescenta ao caluniado, apenas, mais um pecado.
O alvo de quem calunia não é uma infâmia,
mas uma virtude, a mais decantada do caluniado.
Virtude que vai ser substituída
pela mais infame de todas as infâmias.
A calúnia é filha primogênita da inveja.
Não se calunia Satã.
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Sentenças
Alberto da Cunha Melo
Amor só é bom no começo
e não devia nunca
deixar de começar,
ser pura tentativa
e lingerie molhada
sob a mesa, no escuro
de tolerantes bares,
ser sempre essa mão
sem jeito, na hora,
de tocar a outra mão,
de chegar escondendo
humilhações do dia,
e nunca humilhar
quem dança sobre o muro,
a olhar com inveja
esse amor de presente,
sem saber que esse amor,
que é feito de começos,
não tem fim nem futuro.
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Interrogatório
Alberto da Cunha Melo
“Nada de frescura”,
fala o velho agente,
quando Ilo, vulgo “cabaço”,
começa a chorar,
com sua sandália
de tiras arrancadas
e o sangue a descer;
“nada de frescura”,
repete o velho agente
a completar o que diz
com magistral bofetada
no rosto de Ilo;
nesse instante, a mulher
lembra, ao telefone,
que é dia de supermercado;
o velho agente
ainda mais furioso,
grita à distinta
que estava trabalhando,
e, só por pirraça,
dobra as horas
do interrogatório de Ilo;
e deixa o supermercado
para o dia seguinte.
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Poeminha
(Maio, 2001)
Alberto da Cunha Melo
Há quem inveje a infância,
a juventude,
e até a velhice,
e há outros, como eu,
que só invejam os mortos.
Presentes no livro “Poesia completa” (Record, 2017), de Alberto da Cunha Melo, organizado por Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo, páginas 648, 821-822, 865, 962-963, 528, 974, 79, 423, 619, 304, 537, 712, 714, 695-696, 164, 614, 162, 988, 975, 770, 989, 622, 297, 775-776 e 976, respectivamente.
Comentários
Que é um dos poemas mais belos dele