Ângela Vilma (foto daqui)
“Sou uma mulher machadiana, silenciosa e entrada em anos. Minhas mãos não têm mais a suavidade dos vinte, e a conversação que proponho é tímida, reticente, sem qualquer esperança. Ganhei com o tempo um rosto severo, com marcas delimitadas pelo espelho mais cruel. Nele, nem o meu sorriso é como era: quando se abre, uma nuvem se aproxima em confidência íntima, eterna. Meu corpo sem filhos ganhou o contorno dos rios já vividos, sinuosos e vastos, e nas frestas de minha pele habitam peixes como se no aquário estivessem. Veias partidas aparecem nas minhas pernas, condenando-me à mais primitiva das belezas, à ternura das mais antigas pedras. Meus cabelos, como plantas aquáticas, crescem, crescem, e fios brancos despontam, pálidos, errantes. Tudo em mim é natureza se transformando, árvore plena carregada de troncos.”
“Tenho verdadeira comoção pelo ser humano. Sua arrogância, seu apelo, sua solidão. Todos são doces, até aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos.”
“Não estou fazendo terapia para ficar alegre, de jeito nenhum. Faço terapia para descobrir todos os meus abismos, e andar por eles sem nenhum medo. Não é para andar por eles dançante e fagueira. Mas para entrar neles e saber o tamanho de suas paredes; a cor de seu chão; as imagens dos seus pesadelos. Nesses caminhos, não há espaço para a alegria: há apenas para o senso de humor. Eis a grande diferença, fiquem sabendo.”
“Sempre tive uma certa queda pelo grotesco. A maioria de meus namorados nunca entrou na chamada beleza padrão. A beleza física não me comove tanto quanto a feiura. O mundo é dos feios, fiquem sabendo. (...) Há feiuras diferentes, que nos repugnam, ao invés de nos comover. Um dos paqueras que tive aos vinte anos era assim: repugnante. Parecia um ET, tinha a cara triangular. Até mãe, que nunca achou ninguém feio, quando o conheceu me chamou na cozinha com o olho arregalado, me perguntando o que era aquilo. Mas este, de fato, era feio mesmo; e um feio diferente, porque se achava bonito. (...) Era arrogante (...) Cor branca, de um sapo branquelo e envelhecido; vasta cabeleira preta, magrelo e metido a besta. Como se comover com tamanha feiura? A beleza dos considerados feios está justamente na humildade comovente de se saber feio. Esse não: por isso retirei-o do caminho o mais rápido que pude. (...) Fui me apaixonar anos depois por uma fera: tinha a cara de um bode e o mundo todo brilhava nos seus olhos. Era baixinho e me alcançava em todas as nuvens.”
“Devia ser essa a ambição de todo homem, em toda e qualquer instância: sair do senso comum. Tentar não se repetir, tentar dizer e fazer coisas diferentes, livrar-se de uma vez por todas desse legado medíocre e estúpido que é o convencionalismo humano; livrar-se, enfim, de uma certa voz de comando que sempre ecoa nas nossas costas. Uma voz de comando que se diz individual (‘a voz do povo... etc.’), mas que de individual não tem nada. Aliás, há algo individual no mundo? Existe algo individual em mim? Estou contaminada pelo discurso alheio, não há nada de novo em mim a não ser a repetida estupidez. (...) É preciso ser vigilante de si, em extrema e lúcida clarividência. Vigiar a si para só depois vigiar a dita e conclamada ‘sociedade’, e não o contrário. Vigiar a tal ‘sociedade’ sem se vigiar é a repetição da estupidez, é ser boneco de engonço, balançando a cabeça e marchando — porque todos marcham.”
“Adoro o cheiro de suor dele, o chamado suor vencido, que vem de suas axilas sem desodorante. Gosto de seus pés sujos de andar pelo mato, seus pés grossos e calosos, endurecidos como seixos graúdos. Me apego demais a seu hálito fresco de dentes não escovados, sua mania de comer com a boca aberta dando a ver a decomposição da carne. Desde que o conheci, perdi a mania de assepsia e grandeza. Eu, que já não tinha qualquer ambição, depois que o conheci, entreguei ao mundo meus bens, e que são quase nada: duas dezenas de livros, três vinténs de melancolia, e uma espécie de felicidade sem teto.”
“Por saber-me mulher, estremeço como chocolate se derretendo. Fico líquida, espalho-me entre as xícaras e os pratos e os talheres e a mesa e o jantar e o café. Sou mulher, grito dentro de casa, para que o universo escute no teu ouvido, e para que possas usufruir de tudo que tenho, água e chaleira fervendo. E te chamo, Amigo, para desceres o rio comigo; esse rio onde tudo é beira, pedra, limo.”
“Imagino um Deus complacente nos casos de amor impossível; um Deus que sabe ser a vida não cartesiana; que entende o sofrimento como algo não exclusivo, mas de todos os que aqui estão, com seus destinos entrelaçados feito nuvens que se encontram e se diluem, e sem ao menos saberem por que isso acontece. Deus, com certeza, tem piedade de todos nós, humanos que somos e não anjos: pobres seres que se encontram com o indizível apenas por algumas vias, como a intuição, a poesia e o amor ‘que não pode ser’.”
“Uma grande e vertical solidão é a do professor falando quase que sozinho dentro de uma sala de aula repleta e completamente ausente, sem compartilhar seus abismos e suas perguntas ao mundo. Do lado de lá dessa ponte intransponível, surgem um e outro aluno com o olhar perdido, nadando com você nesse mar fundo. Um ou dois ou três. Se não fossem eles, você talvez desistisse e decidisse pelo afogamento. Mas há dentro de nós, professores, sempre uma vontade de não se afogar, e de tentar ensinar como não fazer isso; ou até ensinar a fazer isso, de maneira mais ou menos literária e libertadora. (...) Sempre pensei no grande professor como aquele que não precisa exercer a malfadada autoridade. Porém, na maioria das vezes, os alunos não sabem lidar com a liberdade, preferindo e exigindo, inconsciente e conscientemente, que o professor seja autoritário. Isso se dá por que, para a maioria das pessoas, é mais fácil mandar e obedecer de que tentar estabelecer uma relação de confiança com o outro; de confiança e de afeto; e de compreensão. Mas se não houver um arrebatamento pelo conhecimento, a aula jamais acontecerá.”
Ângela Vilma (foto daqui)
“Tinha sete para oito anos e uma primeira amiga: Sílvia. A gente ia junto para a escola. Morávamos na mesma rua. (...) Vivíamos sempre juntas, a despeito de todo sofrimento que ela me causava. Como, por exemplo, me obrigava a pegar merenda para ela; depois que se empanzinava, me dava cascudos, e me deixava de lado quando conhecia outra amiga. Essa é a parte que mais dói na lembrança. (...) Ela havia conhecido uma menininha riquinha e metida a besta, de nome Livinha. Até o nome era nojentinho. Quando essa dita cuja chegava, ela simplesmente me deixava de lado. Fingia nunca ter me conhecido. Entrava em sua casa, fechava a porta e me deixava olhando a rua. Ia brincar com os brinquedos ricos da outra. Eu, com a cara na rua, voltava para minha porta. Ficava lá, sentada. (...) Quando a outra ia embora, a sem-vergonha fazia um aceno para mim com as mãos abrindo e fechando. O pior de tudo era que eu, sem-vergonha também, retornava. Voltávamos a brincar como se nada tivesse acontecido. Se Livinha voltasse, a cena se repetiria: ela entraria com a menina, fecharia a porta na minha cara, e depois que a outra fosse embora, me chamaria com as mãos abrindo e fechando.”
“Nesses tempos nossos, ninguém tolera o sofrimento. É providencial que você seja sempre alegre, afinal só quem tem pensamento positivo prospera. Depressão? Nem ouse, esconda-a, esconda seu rosto choroso, jogue um lençol sobre seu corpo. O mundo exige que seu braço seja forte, que sua psique seja vazia, que você ostente apenas um largo e inexpressivo sorriso na cara. (...) Nenhum amigo mais dá seu ombro, como em outros tempos; apenas diz com autoridade que é preciso que você saiba que existem pessoas em piores situações; seu ex-psicanalista diz com a arrogância disfarçada em pedantismo que já passou da hora de você se livrar da carência do outro. Na verdade mesmo, o que percebo com tristeza absoluta (se me permitem) é que a ditadura do egoísmo colocou no mundo seres petrificados e terminologias baratas de felicidade, salvo um ou outro ser que ainda conhece profundamente a linguagem do consolo e da solidão.”
“Sempre fui uma pessoa esquiva: gente sempre me deu medo. Mas, no fundo, eu sei, adoro gente. Descobri isso dando aulas. Amo apaixonadamente meus alunos. Gosto de olhar para cada rosto e adivinhar seus mistérios. A fidelidade às carteiras onde se sentam, por exemplo, é um mistério saboroso. Por que será que eles se sentam constantemente nos mesmos lugares? (...) São todos adultos, e se comportam como crianças: isso é o que mais me encanta, e ao mesmo tempo o que me deixa, às vezes, nervosa. Aluno, por mais que goste da aula que assiste, fica sempre doido para ir embora. Sei disso e tento, a cada dia, trazer algo novo, como quem quer roubar mesmo a atenção de uma criança (...) no primeiro dia de aula, na hora da sondagem, eles têm orgulho de dizer que detestam poesia. Nesse instante, volto a sentir a dimensão do desafio... É preciso, a partir daqui, em todos os momentos da aula, olhar para cada rosto, cada olhar, cada gesto, para tentar descobrir o caminho. É ainda preciso não ter medo de amar cada rosto, cada alma e, também, cada desprezo que eles possam lhe dar durante esse percurso. E, mais, é intensamente necessário amar estar ali com eles. E chegar perto. E falar dentro da alma de cada um, mesmo daquele que faz desdém, ri do que você diz. Ah, é tarefa maravilhosa essa. (...) Poesia e alma andam juntas, por isso o resultado sempre é bom, muito bom. Num certo dia, você percebe que o interesse deles já começa a mudar, eles já veem diferente o poema, sem bocejos, pois enxergam suas vidas ali. Depois, começam a brincar com as palavras, e no final dizem: ‘puxa, professora, já estou começando a gostar de poesia!’ Ou: ‘Eu não achava, professora, que poesia era assim...’ E aí acontece a comunhão. É maravilhoso. Será que a sensação que sinto nesse momento é a mesma que um padre sente após uma conversão?”
“(...) Dona Maronita, coitada, que lavava roupa na beira do rio e viu uma jiboia. E, claro, a jiboia também a viu. Só que dona Maronita viu algo mais na serpente: o olho, que trazia, extraordinariamente, a cidade de São Paulo inteirinha, toda iluminada, coisa que ela mais queria conhecer na vida! Então, as duas foram chegando perto: mulher e cidade, ou melhor, mulher e olho e boca de jiboia. Se não fosse um menino desses, que vive a vida inteira tomando banho de rio, dona Maronita ia mesmo conhecer para sempre, e de verdade, a cidade-alvo de seus desejos.”
“Isso tudo foi antes de eu nascer. Mas vivi e vivo essa tragédia. Ela é contínua, pois que Noélia Lúcia habita o ar, menina pequena de sete meses já olhando para a lâmpada, batendo palmas, com sua camisolinha branca. Noélia Lúcia já ficando boa, graças a Deus. Para agradecer, só batizando-a na Lapa, abrigo do Bom Jesus. No caminhão de romeiros, vão os padrinhos, os avós, os parentes, os amigos, todos conhecidos, do mesmo lugar. Três dias e três noites, muita poeira. Noélia Lúcia mole, tossindo. Todos os passageiros sentados nos bancos de madeira, rezando. (...) Essa história nada tem de original, a não ser que é minha. Nessa história, minha irmã Noélia Lúcia chega à Lapa, doente. E o médico que a atende, um estagiário, tira-a dos braços de mãe, levando-a pelo corredor. Volta, após quinze minutos, com a menina morta no colo, e devolve-a à mãe... Poderia dizer que essa tragédia desviou muitos destinos. Inclusive o meu. Pois que mãe morreu ali naquele momento. A mãe que voltou, sozinha, no caminhão de romeiros, não era a mesma de antes. Nasci, portanto, alguns anos depois, com uma herança maldita, a herança do medo. Mãe e eu, andando pelo mundo, gritando. O medo para sempre nos perseguindo.”
“(...) Li em algum lugar que a gente sofre pelo passado, não pelo futuro. Eu sofro, sim, pelo futuro. Nele vislumbro minha morte. (...) Quem mora na filosofia e na arte tem sempre sua morte vislumbrada: não há como escapar desse fascínio, desse ímã, dessa fatalidade. Por isso a gente pisa nos dias com muita dor; saber-se mortal é saber-se menor, insignificante, perecível, sem muita validade. Em contrapartida, o que fazer de uma vida eterna? A sensação estável de uma vida infinita talvez nos cause somente uma vontade imensa de dormir. Enfim, não há solução, tudo é estranhamento e dessa estranheza saímos ou deprimidos — com alguns momentos de beatitude — ou imbecis, não sentindo conscientemente qualquer estranheza. (...) O lugar onde mais me sinto ausente do mundo é numa reunião. Nela geralmente apenas apareço enquanto vulto, em total neblina, mortificada como se esperasse o momento exato de cair na chama inquisitorial da fogueira. É nesse momento que percebo não existir, de fato: ali onde estou sentada há uma lacuna, uma cadeira vazia, antecipando minha ausência que um dia será, claro, definitiva.”
Presentes no livro de crônicas “Aeronauta” (Mondrongo, 2020), de Ângela Vilma, org. por Emmanuel Mirdad, páginas 19, 19-20, 38, 24-25, 29, 42-43, 56, 195, 44-45, 73-74, 145-146, 54-55, 41, 44 e 128-129, respectivamente.
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