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Estação Infinita, de Ruy Espinheira Filho — Parte 06

Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)

“Sim, novamente escrevendo.
Sem saber, como sempre, aonde estou indo,
se é que estou indo a algum lugar.

Às vezes me ocorre
que escrever é exatamente isto: ofício
de quem não sabe aonde ir.
E, como não sabe, tateia
na névoa
à espera de encontrar alguma coisa
que não só não sabe onde está
como não sabe o que é
e que talvez seja uma parte da alma que ficou perdida
na travessia
entre sombras ancestrais
e a vida”

--------

“E o jornalista continuou
em seus bares e botequins.
Já começava a haver aproximação maior entre nós,
à luz das cervejas,
quando os militares saíram dos quartéis
e afundaram o país numa ditadura de mais de vinte anos,
o que fez emergir dos esgotos da cidade,
desde o primeiro instante,
as ratazanas da delação.
E muitos se foram embora,
como eu.

Voltei após longo tempo
e lá estava ele,
no primeiro bar em que entrei.
Falei do meu último encontro com o poeta seu amigo
já há muito morto,
e lá ficamos, bebendo melancolicamente,
com os olhos machucados dentro da noite”

--------

“Trago comigo os lugares onde estive.
Não sou como os antigos que falavam
em sacudir das sandálias a poeira dos caminhos.
Não, guardo tudo,
sempre guardo tudo,
e especialmente guardarei das últimas caminhadas
o seu espesso pó de iluminar a alma.

Das viagens não regresso
jamais”

--------

“Acho que nunca te disse nada
para não quebrar o encanto.

(...)

Um encanto é delicado,
parte-se com extrema facilidade.
E depois sobrevém a tragédia do desencanto.

Por isso as histórias param quando o beijo do
Cavaleiro
quebra o encanto da Bela.
Porque, se continuassem,
eles se casariam,
teriam filhos,
ficariam preocupados com as despesas,
adiante se sentiriam tão entediados que passariam o
resto da vida
indiferentes um ao outro,
vendo televisão.

Por isso cessam as histórias onde cessam.
Como não prosseguem,
continuamos na atmosfera encantada,
todos ainda no poético papel de Cavaleiro e Bela.

Acho que foi por isso,
para não perder o encanto,
que não te disse nada”

--------

“Sim,
que coisa mais inútil passar pela vida
em branca nuvem!
Que imperdoável alienação adormecer
em plácido repouso!
Que grandeza em enfrentar
o frio da desgraça!
Jamais ser espectro de homem
– mas homem de verdade!
Jamais passar apenas pela vida
– mas vivê-la intensamente!

Com o tempo, porém,
fui cada vez mais admirando a
branca nuvem.
Em muitos instantes desejei
estar noutro lugar, noutra situação,
de preferência em
branca nuvem.

(...)

Que melhor lugar pode haver para
–  dormindo ou acordado –  estar em
plácido repouso?
E quem de nós não acha que merece um
plácido repouso?
Não, nada de
frio da desgraça.
Nada de sofrimento.
Tais experiências podem ser boas para quem pretende
trocá-las
por milênios de prazeres em algum paraíso,
como garantem certos corretores espirituais.
Eu, não, não quero tanto,
prefiro dois pássaros voando
a um na mão.
Mais: prefiro todos lá fora,
no alto, longe de mãos.

Não me limitei a apenas passar pela vida
(mesmo porque ela não depende tanto de nós
quanto arrogantemente supomos)
em branca nuvem,
como jamais me senti espectro.
Às vezes até sonho em vir a ser espectro,
no devido tempo,
para visitar certas pessoas
à meia-noite”

--------

“A casa permanece jovem,
embora meu pai a tenha construído
em meados dos anos 50

(...)

Todos os que a habitaram
desde então
trataram-na com desvelo,
inclusive
a senhora que um dia subiu
no grande reservatório de água
para se afogar”

--------

“Sim,
os passarinhos sempre despertaram todas as manhãs
do mundo.
E do Tempo, embora alguns possam achar
que houve era em que os passarinhos ainda não
existiam
e por isso não poderiam despertar as manhãs.
Quanto a mim, acho que sem passarinhos não há
manhã.
Certo que a Terra girava e por isso havia noite e dia,
no remoto e triste mundo sem passarinhos,
mas era um rústico e opaco nascer do dia,
sem os maviosos cantares.

Eu, sinceramente, sou muito agradecido aos deuses
por não ter vivido naquele tempo”

--------

“Muitas vezes ouvimos dizer que não haverá de ser
nada.
Sim, às vezes não será mesmo
nada,
felizmente.
Mas, outras vezes não será mesmo
nada,
infelizmente.

Dizem-nos que não haverá de ser
nada
para nos dar ânimo.
Mas de outras vezes desanimamos seriamente porque
nos parece
que não haverá de ser
nada.

Não, não é nada fácil
viver. Nada.
O jeito é aceitar estoicamente que,
mais cedo ou mais tarde,
de uma forma ou de outra,
não haverá de ser
nada”

--------

“Alguém fala em seu nome
e me leva a ruas antigas que muitos poderão achar
que são as mesmas de hoje
pois conservam suas placas
mas eu sei que eram outras
especialmente insalubres por causa do mau cheiro
do fascismo
entranhado em tudo.

Então
por elas caminhávamos com a alma obscurecida
temendo que algum lampejo de pensamento
ou sonho
nos denunciasse”

--------

“Continua amando-a mesmo
através
da tempestade de outros
amores, quando
ela emerge do caos
e às vezes fica,
longamente,
numa luz que nem de leve
adormece.

E assim é: como a amou
há muito tempo. Como
agora e certamente
depois e depois e
depois”

--------

“Chego como a um fim de tarde
no desejo de que permaneça
como estação
infinita.

Prêmio merecido
após a viagem:
que tudo permaneça como agora,
a vida que me cerca e a paisagem
de onde vim
longa e trabalhosamente.

(...)

quando manifesto meu desejo maior
e mais sábio,
chegou a hora de cessar
o efêmero”




Trechos dos poemas Condição, Dentro da noite, Depois, Encanto, Conversa com Francisco Otaviano, A casa dos nove pinheiros, Passarinhos, Nada, Um de nós, Arco-íris e 70 anos, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.

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