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Estação Infinita, de Ruy Espinheira Filho — Parte 02

Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)

“Leves pancadas no corpo:
são cascas de tangerina
que lhe atiram do alto
(onde estão os livres, os
limpos, que se amam, dançam
em romântica viagem
pela costa do Brasil).
Diz: Covardes. Mas não se
deixa ver em vilipêndio.
O que valem, mesmo, os
gestos – sobretudo certos
gestos – do homem? Ele pensa
em lançar as cascas nas
ondas de urina;
                              porém
aperta algumas nos dedos
e aspira profundamente
o acre odor luminoso.
Isto não, jamais sujá-las
com os dejetos humanos!
Ao contrário: apagar
a noite filha do homem
na alma da tangerina.
E mais: abolir até
os sentimentos agudos
de que há pouco se nutria
consumindo-se, roaz”

--------

“A caneta ainda escreve
com a mesma tinta
de um azul levemente melancólico

Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda”

--------

“No silêncio repousa o seu cansaço.
Tudo é imóvel na tarde,
                                                                    a não ser,
numa réstia de sol,
um vago pó girando
                                                 sobre
o silêncio maior das almas
fechadas nos livros
das estantes”

--------

“Como passaste, pai! Como passamos!

Há tanto tempo já que tu partiste.
Todo um mundo se foi – e vai, e vai...

Olho o teu rosto na moldura e penso
que tenho hoje idade de ser teu pai”

--------

“Nos vossos olhos, imóveis
como chuva estagnada,
há lições serenas que
vêm-me umedecer a alma.
Mas que só compreenderei
quando for sábio de ver
além do espesso do mundo.
Quando, enfim, chegar ao alto
do meu próprio voo profundo”

--------

“Encontrou-o muito quieto e branco.

Do pé direito já parara de escorrer a úmida ferrugem
que começara na pedra e agora marcava também
as palhas e o chão de terra batida.

Alguém, no silêncio morno,
falou em destino.

Fiquei pensando naquela pedra
com uma missão mortal determinada
desde o princípio dos tempos.

Aquela pedra, ali, vulgar e triste
como a ideia de destino”

--------

“O que vem de ti ainda é o murmúrio
que move o sol e as outras estrelas,
embora há pouco
alguém
olhando uma fotografia recente
tenha dito que a tua pele
já não é a mesma”

--------

“Não mudarei em nada a minha vida
para alcançar outra melhor na morte.
Dou-me aos azares, sim, arrisco a sorte,
mas aqui, neste mundo, nesta lida

em que me sinto, sou. Vida, se houver,
depois da morte, valeria a pena
sendo como esta vida: densa, plena
de ganhos, perdas, sonhos – e mulher”

--------

“Amor pressente amor e não o encontra.
Encontra-se a si mesmo
                                                       e é dor somada.
Mas é preciso achar
                                                       e ele prossegue.
Fareja, como um cão,
                                                       mas não há presa.
Desconfia um perfume
                                                       e a brisa o leva”

--------

“Outra é a que
há muito se foi
para longe e dói
num sulco de afeto
incicatrizável”



Trechos dos poemas O prisioneiro Graciliano Ramos no porão do Manaus, Os objetos, No silêncio, Retrato, Afogados, Naro, Anotações num dia de aniversário, Soneto do sábio ócio, Equívoco e As meninas, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.

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