Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)
“Todo amor está perdido
ao nascer.
Em vão nossos corpos
nos absorvem, em vão
nos lançamos aos nossos
abismos recíprocos:
o amor
aí não está.
Em nós ecoa o seu chamado
e nos submete. Mas apenas
chamado: ao fim
há outro chamado
e outro
e outro
e na origem do outro
que sempre vem depois
(e portanto nunca chega)
está o amor,
o que é o mesmo que não estar”
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“Quando as vontades
não se eximem do rei,
quando
as cabeças (de)pendem
de um salto bambo na corda,
melhor é ter pronto o nosso
lado mais claune,
porquanto
menos importa a lei
que um polegar de rei”
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“Sei: com o tempo
só os mortos sobrevivem. Como você,
que passa distraída entre as árvores
e não me vê, distante, noutro plano;
e você
que me olha
com uma infância pungente
e me fala
com voz de lã.
Mas não me diz nada do que eu precisava
ouvir, enquanto eu nada lhe digo do que
precisava dizer,
como afinal sempre acontece
e logo é muito tarde.
(Menos para os remorsos,
que no escuro vigilam; que no escuro
abrem seus poços sem fundo, onde
movem-se répteis dolorosos
e o que não se cumpriu:
doces cavalos
de asas amputadas, sangrando.)”
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“É agosto e ocaso. Logo mais
sem acender as lâmpadas,
lembrarei meus avós brasileiros,
meus avós
italianos,
imigrantes de 1914,
pensarei que tiveram avós e avós
e avós
e que de mim virão (possivelmente)
netos e netos e netos
e me sentirei perdido
entre
uma borda e outra
do Universo”
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“Impossível vencer os sonhos
contrariados.
Em vão
tentamos sepultá-los sob
a urgência cotidiana.
Em vão
nos esquivamos, apóstatas.
Em vão
os trocamos
por esta outra vida.
Pois eles
não sufocam, não
se distanciam, não
cessam de sonhar,
de se sonhar
em nós”
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de súbito
na chuva
curvei-me sobre mim
sobre
o que chamava amor e eis que era
sua falta
e por isso mesmo ainda mais
amor”
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“Ah o rumor
do coração.
Ah
essa lua.
E quando tentamos
disfarçar
como
brancas pedras de certeza
ou neutra
superfície,
eis que uma voz
pergunta
(como o fantasma
de Platão
entre as páginas de Yeats):
‘What then?’
E daí
desfaz-se
a trapaça.
E retornamos
à vida.
Sob o luar
da memória.
No rumor
do coração”
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“A vida transcorre
com uma lenta doçura,
assombrada de poemas
que iluminam como luas
o âmago sujo dos bares
(cárceres, porões, conveses,
nossos ermos, nossos lares)”
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“Rouca, por toda parte os seus tormentos
leva em versos de abismos e violentos
ventos. Áspera voz acende a tarde,
ou a noite, e a calma cessa, e a alma arde
a esse fulgor de desolado canto,
a essa palavra tanto espanto e pranto.
Pela cidade tece sua história,
num recanto intranquilo da memória
onde visito – angústia e alegria –
a esplêndida demência da poesia”
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“No papel em branco,
letras, frases, versos
traças na procura
de luz que disperse
a nuvem obscura
em que vais a esmo,
órfão de ti mesmo.
No papel em branco,
a busca infinita
(um tempo de vida)
que talvez não leve
senão à invenção
de mais outras névoas
sobre as névoas fundas
que jazem submersas”
Trechos dos poemas Do amor; Fragmentos de uma viagem com Lemuel Gulliver; Aqui, antes da noite; Agosto, ocaso; Flor; Passionária; O luar, o rumor; Visita do poeta Carlos Anísio Melhor; A poetisa e Espumas, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.
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