Ruy Espinheira Filho
Foto: Mário Espinheira (interferida por Mirdad)
“Aqui estou
e não creio
porque em mim tuas palavras
tuas viagens a cavalo através das matas úmidas
a memória do pomar da infância e do grande
carvalho fendido por um raio
o árduo trabalho pela justiça pago tantas vezes
com perus requeijões frutas hortaliças
ou não pago jamais
aquela manhã no quadrimotor eu 12 anos de idade
e na mão
a história dos cavaleiros da Távola Redonda
o comício contra os fuzis
a cadela Baiana gemendo baixinho enquanto lhe
costuravas o ventre
perfurado por uma estaca
de cerca
a dignidade
insuavizável como a do teu pai
a compreensão e o generoso
amor
Caminho
novamente caminho
estás comigo como quando pousavas a mão no meu
[ombro
a ternura contida mas espessa”
--------
“Antes de tudo, não é nada disso.
Não te amo: é um amor de outrora
que te ama
como se diante de um espelho.
Talvez não me entendas. Mas isto
não importa: ainda que me
entendesses
eu sofreria igual”
--------
“Em dezembro morremos
todo ano.
E conduzimos nosso
desamparo
ao espelho. Rosto
tronco, membros:
onde quem
vos habitou?”
--------
“Vangloriava-se de estar
a salvo de um mal:
perder
um filho.
Tornara-se imune a essa dor
de modo simples:
não tendo
filhos.
Sábio homem, esse,
cujo medo de perder
um filho
o fez perder
todos os filhos”
--------
“Despedimo-nos do amigo
no azul da tarde. E, uns nos outros,
fitamos os rostos que
o tempo moldou sobre os
rostos suaves, aqueles
que nos fitam da memória”
--------
nada nos chegou
de gesto, palavra,
legado de posses
(estas últimas levadas
por incertos cálculos
e certos parentes).
Mas nos veio este
mistério amoroso
que comove como
cantiga longínqua,
inaudível quase,
incompleta,
e que,
no entanto, escutamos,
e em nós recolhemos.
Desse avô que se foi
antes de nossas vidas,
uma herança cintila
nos ossos, no sonho,
e é doce no poço
do coração”
--------
“Na calma das moringas
não se perde o rio.
Na água em repouso
ainda sonha o frio
da alma que flui,
espuma, ou voa (quando
se lança no vazio)”
--------
“Fecho os olhos. Quero
me apagar na noite,
ser a noite,
esse grande silêncio
lá fora,
onde espero que o mundo
não esteja mais”
--------
“Um dia recordarei
esta hora, estas palavras
que se escrevem leves como
a brisa, e com ela passam
para o jardim em que lembra
a minha alma
enquanto
tarda o tempo de esquecer”
--------
“Vejo-o ali, descalço na areia,
ouvindo o ar em valsa lenta.
Está ali, e em seu rosto a sombra
da ruga que me aguarda no espelho.
Mas não sou eu. É um que conhece a estrada
por onde passam lavadeiras.
Não sou eu,
que não saberia ser tão leve
nem chamar pelo nome o perdigueiro
que se distancia, farejante.
É outro
com sua ciência de árvores,
murmúrios entre seixos, histórias
à luz do candeeiro,
tudo o que perfaz
uma ração de mitos, anátemas, gorjeios.
Para dizê-lo
todos os alfabetos
e nenhum.
Desconversemos
que não podemos não
com este arquejo podrido do perempto
gotejando
doçura dolorosa de ex-manhã
e um menino
um menino
e seu inefável!”
Trechos dos poemas O pai, Antes de tudo, Poema de dezembro, Lendo Plutarco, Despedidas, Giuseppe, Moringas, Noturno, Enquanto e A música recusada, presentes no livro Estação Infinita e outras estações (Bertrand Brasil, 2012), de Ruy Espinheira Filho.
Comentários