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Marce, de Gláucia Lemos

Gláucia Lemos
Foto: Elaine Quirelli | Arte: Mirdad


"Meu Deus, esta ruína é Pedro. Que tempo passou que fez de Pedro este resto que é agora? As surpresas do tempo assemelham-se à fome dos abutres, muitas vezes. Não resisto à emoção e choro também. Meu fiel Pedro. Quem ou o que te pôde fazer tanto mal?"


"Olhei para ele demoradamente. A maturidade física dava impressão de solidez, de abraço caloroso, de beijo denso. Senti aqui dentro um aperto de dor, uma vontade enorme de dizer: Vá embora! – e lavar com as palavras o pejo que estava sentindo por amá-lo assim, ainda vendo-o arrogante, ainda escutando-o presunçoso. Era um aperto de dor, coberto de vergonha, mas baixei a cabeça e lhe falei muito baixo, tão baixo que eu mesma quase não escutava:
– Entre e fique"


"A química da pele é uma porta escancarada para esse vírus miserável que une as criaturas. É uma peste. Você tem consciência de que o outro é uma porcaria que lhe estraçalha a alma, o corpo, o coração, a sua própria vida, mas cadê que você é alguém para dizer: Vá embora, porra!"


"Se isso é amor, que se amem! Essa traiçoeira mentira merece ser vivida, enquanto finge ser verdade. Enfim, o que compensaria viver, se não fossem inventadas as dores do amor?"


"É um homem bonito. Gosto de olhar homens bonitos. Só olhar. Reeduquei-me para não amá-los. Pretendo ainda vir a adquirir suficiente sabedoria para entender a ilógica de amar aquilo que não se conhece. Olhar homens bonitos é uma festa para sensibilidade, e dela não abro mão. Aproveitemos o que têm para oferecer: alegria para os olhos. Não entendo por que escutar o belo é divino, mas contemplar o belo é vulgar. Jamais permiti que me impusessem esses códigos aprovados por outrem. Paguei por isso. Pagarei sempre"


"Qualquer coisa vale muito pouco para durar uma vida"


"Há pratos empilhados e talheres brilhantes alinhados em cima do aparador, em serviço americano. Acho ótimo. Não terei que enfrentar os rostos dos parentes em torno de um jantar servido à francesa. Seria desagradável a meu amor-próprio estar exposta aos olhos do desprezo ou da curiosidade. Principalmente porque não será possível revelar que lhes retribuo igual sentimento"


"Eu era uma mulher corajosa, que perdera tudo por um canalha, para não ser hipócrita a um homem de bem. Assim, na noite morta em silêncio, com um deserto em volta, desfilei pretendendo vestir-me de altivez, em tentativa de não me deixar dobrar àquela chaga. Sangrava na contenção da minha vergonha, que jamais confiaria a alguém. A dor de cada um é muito pessoal, só se assemelha a si mesma. É sempre única, singular como a condenação de cada qual"


"Os egoísmos do amor infernizam os afetos até as últimas consequências, mas a doação da amizade fortalece os vínculos"


"Tantos são os primos que, muitas vezes, me perco na tentativa de identificar quem é filho de quem ... Não imagino quem será a minha companhia de quarto. Alguém sozinho, obviamente, como eu. Mas haverá alguém sozinho neste clã? Todos terão procurado devidamente os necessários pares, de acordo com os hábitos da tribo. E dariam até o derradeiro quinhão de paciência ou sacrificariam a última parcela da própria dignidade para conservar um casamento de aparência. Nenhuma das nossas mulheres se arriscaria a receber o ostracismo das malditas, por coerência com seus próprios sentimentos"


"A intimidade é como a dor. Absolutamente nossa e indivisível"


"Tantas vezes tive que escutar o meu dever de gratidão perante a irmã do meu pai. E as cadeias da obediência prendendo os tornozelos, machucando os pulsos, retendo as vontades, estrangulando as opiniões. E eu perdida. Dolores sorrindo e calando. Se era feliz, não sei. Talvez não fosse, mas recebia aplausos pela docilidade, e era conveniente conservá-la. Eu, ovelha negra, andando sobre os traços que riscavam no meu chão, sem direito a escolha, e aceitando sob opressão. Só perguntando por que deveria aceitar. Existe um figurino a que os poderosos submetem os subjugados. Nunca lhes perguntam se estão felizes, sequer se o compreendem"


"Minha fuga era a busca da realização no meu ateliê, o isolamento por demoradas horas, sem respeito a descanso ou a hora de refeição, voltada somente para a mostra do museu. Assim me doava a meu trabalho, até que a exaustão me vencesse. Muitas vezes, no final das forças, entreguei o corpo ao abraço de uma cadeira de lona, rodeada de fragmentos de pedra, e ali fiquei até que a réstia de sol pousou no meu rosto pela fresta da janela, avisando-me de que estava principiando um novo dia, e era preciso continuar"



Trechos extraídos do romance "Marce" (Solisluna, 2013), de Gláucia Lemos.

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