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Olhos abertos no escuro — Orelha de Victor Mascarenhas

Victor Mascarenhas - Foto: Facebook do escritor

O escritor e roteirista Victor Mascarenhas, autor dos livros Um certo mal-estar, A insuportável família feliz e Cafeína, escreveu a orelha do livro Olhos abertos no escuro (Via Litterarum, 2016), de Emmanuel Mirdad. Veja abaixo (após a imagem da orelha na capa do livro, texto na íntegra):




Um milenar ditado chinês diz: “Procure acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão”. Não sei se li isso num velho livro ou num biscoito da sorte, mas o conselho pode ajudar você na leitura de “Olhos abertos no escuro”, de Emmanuel Mirdad, uma coleção de contos que apresenta uma plêiade de personagens que vagueiam por aí, levando sua escuridão particular a qualquer hora do dia e da noite, assombrando e tirando o sono dos incautos leitores.

E quem haveria de dormir estando obcecado por uma ninfeta que nada na raia ao lado ou remoendo os anos dourados do sucesso fugidio? Como pegar no sono assombrado por zumbis delirantes ou sendo dissecado pelo olhar indiscreto do autor insone? Não é de tirar o sono, quando se é viciado em redes sociais e ninguém te curte? Pode acontecer com qualquer um e de que importa se acontece, quando somos todos assombrados pela impermanência ou pela erosão implacável do tempo?

Não importa a razão ou mesmo se há razão. Na escuridão dos contos de Mirdad, todos são insones. Insones introduzidos pelas bem selecionadas epígrafes de Mayrant Gallo. Insones porque a prosa do autor é ruidosa e não tem quem durma com um barulho desses e acabamos todos acordados naquela solidão típica do leitor, no seu pacto silencioso com o livro.

A cada conto, a cada página e a cada parágrafo, a solidão maníaca dos personagens se exibe quase que pornograficamente e se esfrega na cara do leitor, sempre numa prosa caudalosa, que não poupa os adjetivos, os exageros e uma misantropia domesticada e usada a serviço do texto. Os zumbis de Emmanuel Mirdad vagueiam pelo escuro das suas histórias em um círculo vicioso que envolve desde a mais banal dor de cotovelo ao mais sofrido fracasso.

Seria melhor fechar os olhos e tentar apagar?

Melhor não. Os olhos abertos podem se acostumar às trevas e nos conduzir pelos caminhos tortuosos da obra, prevenir contra armadilhas furtivas e até mesmo nos apontar picadas que sirvam de rota de fuga por entre os excessos de um autor sem filtros. E, enquanto o sol não nascer para dissipar o breu da noite escura de Mirdad, melhor seguir desperto, de olhos arregalados, para tentar sobreviver aos pequenos pesadelos deste livro. Boa leitura e boa sorte para todos.

Victor Mascarenhas
Escritor e roteirista

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