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Seis passagens de Victor Mascarenhas no livro Um certo mal-estar

Victor Mascarenhas
Foto: Vinícius Xavier


"(...) Naquele momento, Geraldo percebeu que nem ele, nem sua ex-namorada ou qualquer um dos seus amigos de juventude, mesmo os mais brilhantes, bonitos ou talentosos, escaparam da vida real e da sua mediocridade opressiva. Geraldo viu os melhores da sua geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos e arrastando-se pelas ruas como um exército de contadores, advogados, funcionários públicos, bancários, donas de casa e outras ocupações opacas e bem diferentes do futuro luminoso que todos haviam sonhado. (...) Seus pensamentos foram interrompidos por um leve cutucão nas suas costas. Era um senhor mais interessado no arroz à grega do bandejão do que em devaneios sobre as ilusões perdidas da juventude de quem quer que seja. (...)"


"(...) Ninguém no grupo que ele e Bia integravam tinha lido o livro, mas alguém falou que conhecia uma pessoa que parece que tinha lido e dito que era racista, que o autor era um reacionário, de direita, conservador, coxinha, capitalista e fascista, como, aliás, eram todos os que pensavam diferente deles. O protesto consistia em invadir o local do debate, jogar uma cabeça de porco morto no sociólogo, impedir que ele falasse e expulsá-lo do evento, sem direito a dizer nada ou se defender daquilo que os que não o leram o acusavam (...) a maioria venceu e queria mesmo era cassar a palavra do sujeito, numa atitude que não era lá muito democrática e se assemelhava mais ao que fazia a juventude nazista de Hitler, o Comando de Caça aos Comunistas na ditadura militar ou os integralistas de Plínio Salgado no Estado Novo, do que com a ação de um grupo democrático e libertário que lutava pelo bem da sociedade, como eles afirmavam que eram (...) A verdade é que ali quase ninguém sabia nada sobre o tal escritor e sua obra, assim como não sabia quase nada sobre muitas das coisas sobre as quais protestavam veementemente, embora acreditassem veementemente que sabiam (...)"


"Na verdade, o supermercado era um recanto onde podia obter conforto para a sua eterna procura por um lugar onde o mundo fizesse algum sentido. Afinal, desde que se incutiu na cabeça das pessoas que o sentido da vida é consumir desesperadamente e sem maiores questionamentos, supermercados, shoppings e congêneres passaram a ser um dos poucos lugares onde a humanidade não tem dúvida sobre o seu papel no mundo, excetuando-se apenas o dilema que nos aflige quando, tal qual Hamlet segurando uma caveira e encarando seu momento 'Ser ou não ser?', temos que decidir, empunhando a máquina do cartão: 'Crédito ou débito?' Eis a questão."


"(...) Henrique não tinha cruzado a fronteira imaginária entre a vida adolescente e a vida adulta, aquele momento em que deixamos de ser jovens idealistas e começamos a nos transformar em velhos pragmáticos. Todos passam, ou deveriam passar, por esse momento. Até a geração de 68, que produziu uma revolução poética e política na França, lutou pela liberdade no Brasil e revolucionou a cultura e o comportamento no mundo todo, virou uma gente cínica, vazia e pragmática que assumiu o poder para repetir e aprofundar tudo o que eles mesmos combatiam no passado. (...)"


"O preparado era uma poderosa mistura de veneno de rato, arsênico e estricnina, guardado para ocasiões especiais como aquela. Tenório, braço direito e parceiro de longa data, já tinha ajudado seu chefe a dar cabo de alguns inconvenientes nesses anos que o Blue Moon está em funcionamento. Num rápido esforço de memória, enquanto localiza o bem guardado recipiente com o preparado, Tenório se lembra de um garçom ladrão, de um agiota que veio cobrar uma dívida impagável, de um cafetão que ameaçou quebrar o bar inteiro e de uma prostituta que chantageava seu chefe. Todos sorveram a mistura mortífera, uns na bebida e outros na comida. Atualmente alguns estão acondicionados, devidamente esquartejados e embalados, na pequena câmara frigorífica que fica nos fundos do estabelecimento, outros já foram consumidos em empadas e croquetes diversos."


"Não era a primeira vez que Mazinho cruzava com situações desse tipo. Viu muitos jogadores serem selecionados por olheiros, ganharem a posição no time titular, elogios de repórteres e comentaristas, subirem para o profissional ou renovarem contratos, mesmo sem apresentar um bom desempenho, apenas por aceitarem, alguns de bom grado e outros nem tanto, prestar serviços sexuais a treinadores, profissionais da imprensa esportiva, preparadores físicos e dirigentes pelo país afora. (...) Depois de algumas semanas resistindo às investidas de Machado, o empresário abriu o jogo e mostrou as travas da chuteira para o então jovem atleta: – Seguinte, meu filho. O mundo do futebol é assim. (...)"



Presentes no livro de contos "Um certo mal-estar" (Solisluna, 2015), de Victor Mascarenhas, páginas 11, 32, 85-86, 94, 50 e 22, respectivamente.

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