Carlos Barbosa - Foto: Sarah Fernandes
O escritor e jornalista Carlos Barbosa, autor dos livros Obscenas e Beira de rio, correnteza, entre outros, escreveu o posfácio do livro Olhos abertos no escuro (Via Litterarum, 2016), de Emmanuel Mirdad. Veja abaixo (após as imagens do posfácio no livro, texto na íntegra):
O que se conta de Olhos
abertos no escuro
“A
partir de agora, só escrevo romance”.
Começo
com essa notícia propalada por Emmanuel Mirdad. Depois deste livro, cuja
leitura você encerrou há pouco, nunca mais contos mirdadianos.
E
este é apenas seu terceiro livro do gênero. Veio bem, faço o registro, até esta
parte que ora diz encerrar.
Mas
daqui me pergunto se o conto foi consultado. O conto que também é trezentos,
trezentos e cinquenta. E que tem lá suas múltiplas exigências.
Pois
me vem a lembrança da lenda que flui de certo poeta alexandrino: preparava-se
no horário do almoço para escrever poemas, e a poesia não se fazia presente.
Revoltou-se. E a Poesia, então, veio lembrar ao poeta que Ela não era
prostituta para atender chamado à hora exata. O poeta que estivesse pronto
quando Ela decidisse aparecer.
“Persigo
as grandes histórias”, diz o agora “ex-contista”, autor de Olhos abertos no escuro.
Sim,
as grandes histórias, a maldição das grandes histórias. Carrego algumas comigo
há décadas, outras me perseguem. Tenho lutado com elas feito um cão esfaimado,
estraçalhando-as em picadinhos e por elas sendo espremido em dificuldades e
ganidos. Penso que talvez seja o caso de se brincar mais com as histórias, com
elas correr picula, saltar tibas e muros, antes que o sono nos pegue de jeito.
Marcel
Proust, que se esvaiu por sua grande história, disse, em seu Em busca do tempo perdido, que “talvez
algumas obras-primas tenham sido compostas entre bocejos”. Ou de brincadeira,
permito-me acrescentar.
“Há
um vazio para ocupar, que os grandes deixaram — e continuam deixando ao partir desta para outra (ou
para nenhuma, se tiverem sorte)”, diz Mirdad. Esta, a aventura a que se propõe
a partir de agora.
Mirdad
reuniu 30 narrativas para o grand finale de
sua contística em Olhos abertos no escuro.
Exigente, o autor revisitou seu primeiro livro de contos, Abrupta sede, e se entregou à reescrita de 12 deles,
apresentando-os aqui com o aprofundamento e a roupagem que julgou mais
adequados ao seu momento autoral. As narrativas que completam o livro
aproximam-se do miniconto e do poema em prosa, contribuindo muito para revelar
a faceta arrojada do autor, que se expõe e se arrisca em seu construto
literário.
Um
narrador furioso manipulando tormentas e looks.
Vejamos
o conto Botox, entre os mais extensos. Encontramos lá a futilidade, a
ganância, o jogo de aparências, a vida dissoluta da aristocracia, a corrupção,
a famosa sede de ascensão social, o brilho dos holofotes ou dos flashes fotográficos, a disputa de poder
entre rivais, o brilho como objetivo, o engodo como estratégia de vida. A
mixórdia de uma Marília sem Dirceu, mas que não perde o rumo do sucesso, mesmo
às portas da morte.
Assim:
Muitas vezes, quem se classifica como
preparado, não está + Desfile a sua alma para fora, com glamour + Marília é o
cão. A desgraçada não morre mais! + Quem fica é quem se molda, nesse balé de
passagens.
Já
no conto Sereno aceitar, um porteiro
de edifício deposita a confiança da conquista de um novo e melhor emprego em
sapatos vermelhos furtados de um cadáver de bandido. Trapaças da sorte, crônica
urbana, noturna e sanguinolenta. Até mesmo o sapato importado escava a pele,
produz sangue e dor. Os sapatos, que projetam uma vida melhor, o trazem de
volta ao mesmo sítio em que os recolheu para um acerto de contas.
Não
é preciso ir longe para encontrar o que nunca se teve. Sapatos vermelhos não
combinam com trampo, mas com tirambaços na noite: o sangue e tudo que nele
empoça, até mesmo nos calcanhares.
Portando o tal objeto caro, de
valor, belo, enobreceu-se pela frágil e farsante via da autoproclamação, sem
uma cifra a mais na carteira + Ligou o foda-se e partiu.
Em
Botox, o autor fez o mergulho no
mundo das aparências e ilusões de poder e glória terrenos, tão valorizados em
nosso tempo, revelando truques e tramas traiçoeiros que promovem ascensão e
ruína social. Em Sereno aceitar,
revelou um reflexo patético de ilusão e aparência no extremo oposto da pirâmide
social, com o mesmo objetivo e consequência: ascensão e ruína. Se, em Botox, a etiqueta valoriza o produto
comum, em Sereno aceitar, o par de
sapatos vermelhos representa a esperança de incorporação de valor — a busca de qualificação pessoal
por meio de algo externo, o equívoco que tem padronizado as recentes gerações.
Ray
Bradbury, em seu O zen e a arte da
escrita, ensina a certa altura: defina um cenário, coloque nele um
personagem e depois vá atrás do sujeito, anotando tudo o que ele fizer e o que
acontecer. Então, tá.
O
narrador furioso avançou em sua incursão pela noite da Soterópolis, por seus points badalados, na agitação das
academias, embalado por referências musicais. E até mesmo viajou para a Chapada
em O Reino, numa fuga canhestra e
freudiana. Amor e traição, bebidas e drogas, insegurança e solidão, tédio e
indignação, sarro e revolta, sexo e medo pontuam os contos de Mirdad. Coisas da
nossa contemporaneidade difusa e obscena.
Mirdad
sacudiu suas pulgas nas páginas deste livro. O contista se despede nos
entregando, a par dos contos mais extensos, minicontos, prosa poética e alguns
gritos sedentos, que ninguém é de ferro-gusa nessa casa de Noca, o grande circo
da alma serumanizada.
De
olhos abertos no escuro nem sempre resulta em contagem de carneirinhos. Isso
logo me pareceu não ser a praia de Mirdad. Então, pressenti que as narrativas
mais curtas deste livro, como nuns versos que escrevi para uma canção, teriam
“a força de um pulso / batendo / no olho da escuridão”. E não me enganei.
Jonathan
Franzen, romancista norte-americano, disse, com pertinência, em seu livro de
ensaios, Como ficar sozinho, que só
vale a pena escrever ou ler um livro se o autor se colocar pessoalmente em
situação de risco. Então, tá.
Mirdad
demonstra desapego à fórmula de sucesso, está claro. Arrisca em forma e
linguagem — se, antes,
limpou o fraseado e aprofundou os temas, agora, leva a agilidade narrativa ao
espoucar de flashes, ao golpear de
esquetes teatrais e o texto ao delírio de gôndolas de supermercado. Cenas de um
cotidiano citadino extraídas dessa condição contemporânea de violência, sexo e
desorientação psicofilosófica, como em Que
seja duro enquanto sempre, Impermanência,
Sem dó, A farsa, Fraseando e Brutalistas, isoladamente ou tudo junto
e misturado, um típico coquetel de atitudes ferradas, pois “longe estão as
vozes”.
Destaco
Selvagem por seus quatro exemplares
parágrafos. Guerra, sadismo, referências da crônica policial e dos seriados de
tevê, descrições precisas, o homem preenchendo sua solidão noturna com a mais
inútil das violências, matando a quem não morre.
Esmagar
um inseto nem sempre resulta em prazer ou morte. Ou mesmo vitória, se é isso
que se procura. Moreno é surpreendido pela cascuda, fica satisfeito com “o fim
justo do inimigo”, depois, se impressiona com os restos que ainda se agitam e,
por fim, horrorizado com o que lhe vem à mente, protege-se com algo higiênico.
A sequência é precisa: matar, esquartejar, pensar em comer e despejar no lixo.
A
morte da barata retrata, na verdade, a “morte” do cidadão Moreno, você e eu. O
indivíduo contemporâneo procura se locomover nas grandes cidades: notado pelo
mais poderoso, é chutado pelo desemprego, espremido nos coletivos urbanos,
assaltado com violência, atropelado por uma viatura, ferido gravemente, levado
a um pronto-socorro, onde passa por sessões que lembram muito as descritas no
conto.
Você
é forte, resiste a tudo isso, “contorcendo-se violentamente, tentando escapar
da ardência infernal”, e sai mutilado da experiência, brandindo uma muleta ou
um toco de braço, para descobrir que agora é que o bicho vai pegar:
desassistido pela Previdência, e pela Providência, deteriora-se sem remédios e
nas filas do SUS, vai parar na sinaleira com uma cuia na mão, o vidro elétrico
do carrão esmagando os dedos que sobram, sem saída, gangrenado, prestes a ser
devorado pela cidade.
O
poderoso não deixa quieto o mais fraco. Precisa se sentir forte na carne
alheia, precisa testar sua potência de impingir dor, precisa de você, Moreno
Barata, para se confirmar poderoso, “como um moleque que se entedia das traquinagens”.
É nesse estágio que, antes de atacar o próximo cascudo que lhe cruzar o
caminho, você é afastado com um peteleco até o lixão mais distante. Moreno é
Deus, a barata, todos nós. Deus, em nosso tempo, veste uniforme de porteiro,
recepcionista, fiscal de qualquer coisa, policial, político ou, ouço uma
vozinha aqui dentro me lembrar, pai e mãe.
Em
Selvagem, como nos melhores momentos
dos seus contos, percebe-se o prazer de Mirdad em contar, o gosto pelo detalhe,
pela exploração das possibilidades de uma cena e sua entrega à história que
pede para ser contada, sem censura, com destemor. Aí está o germe do
romancista, acredito.
Olhos abertos no escuro encerra a
contística de Emmanuel Mirdad, relembro. Raro acontecer de um autor fechar um
ciclo de sua obra ainda jovem e com tanta ênfase. Não se trata de uma atitude
rimbaudiana, pois outro ciclo, o romanesco, está em preparo. Dessa forma,
recomendo ao leitor uma viagem aos livros anteriores de contos do autor. Essa é
uma oportunidade, igualmente rara, de pressentir os romances que Mirdad
engendra em sua máquina de retorcer e espicaçar personagens.
Se,
em seu segundo livro de contos, O grito
do mar na noite, Mirdad prestou homenagem ao escritor recentemente falecido
Hélio Pólvora, dedicou agora este livro a outro escritor baiano, Mayrant Gallo.
As epígrafes todas foram extraídas da obra de Mayrant, ficcionista e poeta
firmado por sua já extensa obra como um dos principais escritores da nossa
terra.
É
o próprio Mayrant Gallo quem afirma ser o propósito de Mirdad, ao escrever seus
contos, “retratar o nosso mundo. Cada conto é uma fotografia de um álbum
espúrio” e que se alguém, no futuro, desejar “saber como era a vida neste
início de século XXI (...) encontrando O
grito do mar na noite, achará a própria vida daquela ‘nossa presente
época’, pulsando como um coração imortal”. E isso encontra reforço em Olhos abertos no escuro.
Ao
ler seus contos, fico com a impressão de que Mirdad está no caminho certo,
aquele apontado por Roger Martin Du Gard, em seu monumental Os Thibault, na voz do professor
Jalicourt, aconselhando Jacques, que queria ser romancista: “Apresse-se! Vá
viver! Não importa como, não importa onde! (...) O mergulho na fossa comum!
Nada melhor para limpar a gente. Movimente-se da manhã à noite, não perca um
acidente, um suicídio, um processo, um drama mundano, um crime de lupanar! Abra
os olhos, olhe tudo o que uma civilização arrasta atrás de si, de bom, de mau,
o insuspeitado, o ininventável! E talvez que depois disso o senhor possa dizer
qualquer coisa sobre os homens, sobre a sociedade... sobre o senhor mesmo!”.
Então, tá.
Seguimos
todos de olhos abertos na escuridão.
Carlos
Barbosa
Salvador, agosto de 2015
www.caobarbosa.blogspot.com.br
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