Bruno Liberal (foto daqui)
"Eles conversam animadamente entre si. Todos gesticulando, comendo, bebendo, rindo. E o velho na ponta da mesa observando a todos com seus olhos de panda, tentando reconhecer cada um daquela mesa. (...) A dificuldade de resgatar na memória os rostos deixa-o cansado. (...) Perde o interesse. (...) Fixa os olhos no prato vazio. (...) Havia uma consciência cega de fazer parte daquilo tudo e, ao mesmo tempo, não ser parte de coisa alguma. Um pedaço de osso arrancado da carne macia e suculenta e deixado de lado. Fazia parte geneticamente, mas não havia unidade. (...) Batucando com ossos na mesa de madeira maciça. Ossos que serão enterrados em pouco tempo. Ossos que servirão de alimento ao infinito. (...) Ossos de carbono. (...) E a mesa é barulhenta e farta no Natal. (...) Ele, o velho, poderia falar qualquer coisa. Gritar qualquer besteira. Mas a última coisa que disse foi há 40 minutos. (...) Batuca sua música antiga e sente a invisibilidade da velhice. É palpável e firme como a madeira da mesa. Sente no pescoço essa invisibilidade pesada tentando arrastá-lo para algum lugar sombrio, além de sua compreensão."
"Trinta e sete anos. Mãe solteira. O pai sumiu no carnaval depois de uma rapidinha em pé mesmo, ancorada naquele carro vermelho no estacionamento. Lembra da cor. E lembra que ele disse para ela não sair dali que ia pegar duas cervejas. Duas. E não voltou. Ficou nove meses ali parada, esperando, sem beber qualquer cerveja. Lembra que era vermelho, o carro. Lembra de ter chorado e voltado ao carnaval. (...) E o cara da varanda na varanda. (...) Ele olhando, ela nadando. (...) O dia se enchendo de noite, como lama na piscina transparente de produtos esquisitos: ácido hipocloroso. Ácido: derreteria imediatamente na piscina, sua pele desmanchando, olhos caindo, ela gritando."
"(Imagina a vida de um tênis. Um papel, um projeto, uma apresentação para o setor de desenvolvimento de novos produtos, batem o martelo, o marketing opina, faz a campanha e mandam materializar na fábrica. Provavelmente China. Muitas mulheres. Muitos pedaços de tecidos e partes vindas de outras fábricas também chinesas. Montam tudo com muita agilidade. Mãos de mulheres chinesas: preciosas, apressadas. Milhares de caixas dentro de um container num navio coreano atravessando o Atlântico infinito. Caminho das antigas caravelas. Imagina Colombo com seu tênis Asics azul manobrando a Nau Santa Maria e chegando a Cuba com um símbolo tão capitalista.)"
"O caminho de terra está cercado por imensas árvores que não consigo distinguir. Sinto-me realizado, correndo livremente. Começo a perceber nas árvores um aspecto, que a princípio achei interessante, mas depois pavoroso. Elas possuem olhos. Grandes olhos de árvores. Amarelos. Olhos que acompanham meus passos. (...) Acordo subitamente. Tudo escuro. Levanto, passo a mão no interruptor para ligá-lo, mas a luz não acende. (...) Começo a achar estranho tanta escuridão. (...) Levanto tateando a parede e chego até a janela. (...) Abro de uma vez para sentir a claridade. (...) O que sinto é o sol queimando minha face, mas tudo continua escuro. Apenas sinto na pele. Não vejo (...) Um desespero fulminante toma minha mente e começo a gritar. Estou cego. (...)"
"Fica espiando a vida dos amigos pelo Facebook enquanto a enfermeira veste sua filha com a roupinha cuidadosamente comprada para a ocasião. Espera sua esposa voltar para o quarto. Depois que postou a foto, perdeu, de certa forma, o interesse em ver a filha. Mas isso ele não pensa. (...) Compartilha duas bobagens. (...) Não demoram muito. (...) – Estou muito feia? – diz a esposa demonstrando a prioridade da preocupação. (...) – Você está linda! – diz o marido mentindo. – A enfermeira disse que já vão trazer nossa princesinha. Olha a foto que postei no Facebook. (...) – Oh, coisa linda... mostra as outras. (...) A criança chega nos braços de uma senhora gorda vestida de verde. A senhora pergunta se eles querem furar a orelha da menina. O pai negocia rapidamente. Consegue cinco reais de desconto e se orgulha. Pensa em dizer que o preço é um roubo. (...)"
Presentes no livro de contos "Olho morto amarelo" (Cepe, 2013), de Bruno Liberal, páginas 14, 27-28, 47-48, 33-34 e 42, respectivamente.
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