Márcio Matos
Foto: Divulgação
"As cores estremecidas da atmosfera percorriam um século de pequenas partículas de poeira, esfumando discretamente a paisagem. Quando há tempo, há sempre uma remota chance de humanidade, mesmo nos locais mais hostis, onde as pessoas apenas respiram na certeza de que alguém ou algo infinito lhes guarde um futuro glorioso."
"Ao ver o corpo estirado, o coveiro se refestelou. Atirou-se sobre a mulher e abriu a braguilha da calça com agonia. A expiração que vinha dos pulmões subia até a garganta em direção ao ar, alagando narinas e boca como um vômito incontrolável de gás e calor. Estrebuchava feito verme no lodo, o sangue misturado ao suor dos corpos, mas, para a sua sorte, calhou de não haver nenhum sepultamento naquela tarde."
"A incrível sucessão de escusas não tinha fim. Contagiava inocentes úteis, parasitava o raciocínio de pessoas mais lúcidas, avolumava-se na consciência do promotor. Para Prudente, o caso se transformara numa questão de honra. Ele não cederia a conchavos, não se alinharia à multidão. Estavam todos sendo conduzidos numa travessia marítima quase messiânica. Parecia-lhe fatal que terminassem afogados. (...) Sentado na mesa mais afastada do boteco, ele se perdeu em pensamentos implacáveis, típicos de pessoas que se julgam perfeitas e raras. O encontro com aquela criatura impetuosamente escorregadia apenas serviu para exacerbar a sua pedantice, revelando-se-lhe como choque da civilidade contra a mais pura manifestação da malandragem."
"As verduras podres se acumulavam na vala entre o meio-fio e os paralelepípedos, um canto de perfeita exclusão. Quase sem perceber, os transeuntes chutavam as folhas de alface e as laranjas estragadas para a lateral da rua. Gary sentia-se um pouco como aqueles restos. Sabia dos próprios defeitos, da incapacidade de reconhecer excessos e não tinha mais expectativas de acolhimento."
Presentes no livro "Ave Noturna" (Via Litterarum, 2015), de Márcio Matos, páginas 09, 11, 25 e 50-51, respectivamente.
Comentários