Mônica Menezes (foto: Sarah Fernandes)
triunfo
Mônica Menezes
[para Kátia Borges]
sou um fracasso para o sucesso
sou um sucesso para o fracasso
quando nasci, o médico disse:
por pouco
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poema para os olhos de minha mãe
Mônica Menezes
minha avó materna não deixou fotografia
morreu de parto
numa manhã de inverno
aos trinta e seis anos de idade
em sua própria cama
dizem que era bela
com seus cabelos negros
e o olhar azul profundo
a espiar o tempo
minha avó materna era judia
como sua mãe, a mãe de sua mãe
a mãe da mãe de sua mãe
e sua filha
como a filha de sua filha
e a filha da filha de sua filha
dizem que era forte
com seu corpo esguio
atravessando vales
a desafiar a sina
minha avó materna não nos legou seu sobrenome hebreu
pois o perdera antes mesmo de nascer
também jamais lhe escutaram pronunciar a língua
nenhuma carta, nenhuma joia, nenhum caderno de receitas
nenhuma velha Torá no fundo falso de um baú
nenhuma fotografia
somente sua ausência
seu sangue antigo em nossas veias
e uma dor quieta
e infinita
nos olhos ternos de minha mãe
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artifício
Mônica Menezes
abri um buraco no meu ventre
escavei fundo
com minhas próprias unhas
todos os dias
cinzelo suas formas
faço da dor
minha única arte
há uma rosa escarlate
sob meu vestido
e dentro do meu silêncio
mora um grito
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dentro
Mônica Menezes
dentro de mim mora uma dor
persistente e calada
eu caminho os caminhos
vivo as histórias
invento todos os dias grandes motivos para cantar
mas dentro
bem dentro de mim habita uma dor
fina
ancestral
e calada
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semente
Mônica Menezes
quando eu nasci
enterraram meu umbigo
na porteira da roça do meu avô
os anos passaram
meu avô morreu
retalharam a terra
e parti para a cidade
mas ainda hoje
estou plantada lá
naquele chão vermelho
que nem existe mais
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sobre o que dói
Mônica Menezes
o menino sírio encontrado morto na praia
o olhar da moça vendendo paçoca no sinal
a loucura do meu irmão
a cicatriz atravessando meu ventre
meu desatinado sim
seu peremptório não
os livros há meses encaixotados
minhas pernas bambas
o sol encandeando meus olhos
quando tudo é noite
Presentes no livro “Pequeno álbum de silêncios” (Boto-cor-de-rosa / paraLeLo13S, 2021), de Mônica Menezes, com fotografias de Sarah Fernandes, páginas 45, 33-34, 27, 55, 32 e 18, respectivamente.
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