Oito do oito de oitenta e oito. 25 anos atrás, eu morava na Avenida Central do Jardim Savoia, em Ilhéus-BA, e estudava na Escola Castro Alves, que ficava na Avenida Soares Lopes, hoje desativada. Faltavam 59 dias para fazer oito anos e cursava a antiga 1ª série do primário no turno matutino. Na primeira aula deste dia remoto, uma segunda-feira, quando escrevia em meu caderno o cabeçalho da lição, me toquei da peculiaridade da data: 8/8/88. Já conhecia o infinito [como símbolo, é claro] e essa sucessão de infinitos escritos numa BIC azul no papel pautado fascinou aquela criança de mim, de personalidade introspectiva, ausente, reclusa em diversos mundos de imaginação, histórias e personagens fantasiosos.
Interessante que este dia dos quatro oitos enfileirados foi o que mais vivenciei enquanto existência física. Larguei as histórias criadas nos cadernos, os mundos dos bonecos Comandos em Ação, o videogame e a leitura da Enciclopédia Abril ou revistinhas do Homem Aranha, para poder curtir o dia especial enquanto vivo. Tudo que fiz, a partir da revelação na sala de aula, de manhã até dormir, foi experimentado como especial. As garfadas do almoço, a balançada na rede da varanda, o rolé de bicicleta no bairro de ruas de barro, o picolé na vendinha de ponta de esquina, as conversas com os moleques vizinhos, o seriado Jaspion na TV Manchete, o beijo de boa noite da minha mãe. Tudo foi uma tentativa de pertencimento àquela data singular, um enraizamento completo na história dessa passagem enquanto Emmanuel Mirdad. Recordo que não houve dia mais especial que esse na minha infância.
Dez anos depois, já morando em Salvador-BA, cursava o 3º ano, o último da carreira escolar, no Colégio PhD da sede Itaigara, na Avenida ACM, hoje desativado e incorporado à Clínica Delfin. Faltavam os mesmos 59 dias para completar, desta vez, dezoito anos e correr o risco de ser preso, como brincávamos. Aluno do vespertino, estava presente em uma aula matinal de reforço para o vestibular em pleno sábado. Antes de anotar as dicas no caderno [o aprendizado era como passar para a universidade – foda-se o conteúdo de que se está ensinando], preenchi aquele comumente desprezado espaço para as datas, geralmente preenchido pelas meninas, melhores alunas da classe: 8/8/98. Abreviando, oito do oito do oito.
Dez anos depois. A aula acabou ali. Não mais tão introspectivo quanto na infância, mas autoproclamado poeta desde 1996, a sensação de reencontro a esta preciosa data dos infinitos perfilados uma década depois me sensibilizou por demais. Não preenchi no caderno as enganações em forma de lição. O que fiz foi um extenso poema intitulado “Dez Anos no Túnel”. Mesmo muito jovem, a sensação que tive foi bem próxima ao que devem sentir os condenados à morte, doentes terminais, com períodos exíguos de vida declarados pelos médicos desalmados, no último dia que lhe resta nessa conta macabra. Pela primeira vez enquanto ser consciente de que estava vivo pra morrer, tive a confirmação de que já tinham se passado dez anos desse curtíssimo período exíguo de vida declarado pela existência enquanto ser humano que carregamos desde o parto, seja por biologia ou por Maktub. Ao invés de vivenciar aquele pertencimento ao dia infinito como foi em Ilhéus, no Jardim Savoia, dez anos depois fui tomado pelo terror de que, na média, ainda restavam mais uns seis reencontros após 1998 – se não houvesse algum imprevisto pelo caminho.
O poema “Dez Anos no Túnel” além de extenso, era horrível. Pouco tempo depois o reduzi e renomeei-o como “O Senhor dos Relógios”, que virou uma canção sempre presente no meu repertório inicial. O refrão “Como eu queria ser o senhor dos relógios, dominar o tempo, fazer dele vida e não morte” resumiu meu choque adolescente por alguns anos, até que o poema foi novamente reescrito em um novo poema/canção intitulado “A Canção do Poeta Adolescente” (2001), uma versão incorreta que idolatrava a juventude e desprezava a velhice, até chegar na sua versão final, transmutando o revoltado inconsequente em um aprendiz – mesmo com a recomendação hedonista logo do início: “faça todo o sexo que teu fôlego aguentar” -, e o título final de “A Canção do Jovem Poeta” (2002). Em 22/11/2005, compus a melodia e o poema que foi originado da dor de 8/8/98 foi eternizado como a canção “Young Poet’s Song”, da banda the orange poem, que teve o título modificado para “8/8/88”.
Vinte anos depois de 1988, continuava morando em Salvador-BA, tinha me formado em jornalismo na UFBA, mas trabalhava como produtor cultural. A 59 dias de completar vinte e oito anos, namorava há quase três anos com uma menina seis anos mais nova, um grande amor. Sortudo, tinha ganho o edital nacional do Oi Futuro e estava pré-produzindo a 1ª edição do Prêmio Bahia de Todos os Rocks, que me colocou oficialmente no circuito do mercado profissional de cultura na Bahia, após trabalhos como agente de shows e produtor de noite em barzinhos desde 2004. Pois aquela sexta-feira, tão peculiar quanto 1988, foi a data do triplo infinito, 8/8/8.
Não fui surpreendido, já esperava sua chegada, pois acompanhei as datas singulares dessa década, 6/6/6, 7/7/7 e por aí vai. Mas também não quis pertencer como na infância, nem me aterrorizei como na adolescência. Vinte anos depois, no especialíssimo leão ascendente com leão, o infinito triplo [tão bem artisticamente incorporado pelo aniversariante de oito de agosto Messias em sua trilogia “escrever-me, envelhecer-me, esquecer-me” - aqui], vivi um dia de trabalho comum, como outro qualquer. Fiz uma reunião pela manhã e garanti um apoiador para o Prêmio BTR. Pela tarde, outra reunião, dessa vez com a MC Comunicação [que fez a assessoria de imprensa do prêmio], na companhia do produtor executivo do evento, Marcus Ferreira, antes de nos tornarmos sócios na Putzgrillo Cultura. De carona com a namorada, encerrei o dia comum jantando uma quesadilla no restaurante mexicano Tijuana, na Rua Minas Gerais, Pituba, para aliviar uma DR brutal originada de propostas exóticas que fiz. Não vivenciei os pedacinhos do dia e nem escrevi um poema abismado. Simplesmente trabalhei. Adulto.
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