Mayrant Gallo
Foto: Elieser Cesar | Arte: Mirdad
"Quando a pedra de mármore fechou a sepultura, cimentada pela habilidade e rapidez de um dos coveiros do cemitério, e as pessoas começaram a se dispersar por entre os túmulos e pelo caminho de volta, Isaac compreendeu que era realmente depois da morte que o sujeito se transformava em ninguém, nada, algo nulo, um objeto de uso, o veículo do desejo alheio ou, talvez, o repositório de seus sonhos frustrados, de seus desejos adiados e suas escolhas malfeitas. Seu tio jamais fora religioso, e agora o era; jamais pensara em se salvar, e agora, morto, segundo o padre, entrava no Paraíso; jamais pensara em Deus senão com sarcasmo e desprezo, e agora era o próprio pensamento corporificado de Deus. Seus biógrafos, muito embora ninguém fosse se interessar por ele, poderiam dizer o que bem entendessem, atribuir-lhe frases, fatos, esticá-lo ou encolhê-lo. Poderiam até mesmo recriá-lo – e é o que em geral se faz"
"O corpo parecia um tronco fino de árvore abandonado à ação do sol e das intempéries. Pés e braços que de tão magros haviam se encarquilhado, como ferro batido na forja. Nu, à mostra para a identificação dos parentes e a conseguinte beatitude das roupas, evidenciava um peito fundo, um ventre intumescido, um pênis que despertava, a um só tempo, piedade e vergonha, encolhido em si mesmo e sem qualquer lembrança, nem dos amores nem dos períodos de solidão. O pesadelo insensato de grandeza humana enfim se esvaziara, e aquele corpo se pusera pronto a receber a terra"
"O Gordo tinha uma teoria: mulheres se deitam à noite com possibilidades e despertam pela manhã com frustrações.
Ele era uma possibilidade. E também, a qualquer hora, uma frustração"
"Sua fisionomia de surpresa se intensificou: 'Então a polícia sabe o que você faz, é isso, é?' Eu não podia negar, sua compreensão era exata, embora destituída de novidade, como o é, por exemplo, desde o início dos tempos, a morte. Eu matava, e a polícia sabia, assim como vivemos sabendo que vamos morrer. Continuei em silêncio. 'Deus, a polícia sabe!', ele deixou escapar, num tom mesclado de desespero e alívio. O gordo estava atônito e a meio caminho de se escandalizar. 'Sendo assim, qual é então o papel da polícia?', perguntou, num ímpeto de inocência e retórica. Não demorei a responder, pensando: 'Talvez fingir que tudo vai bem, sob controle'. Em geral guardo comigo minhas crenças e conclusões. Vive-se melhor assim, em silêncio, numa suposta e suportável ignorância, mas naquele momento não consegui me conter"
"Que era preciso fazer para publicar? Pagar do seu próprio bolso a edição? Promover-se pelos corredores sujos das instituições públicas? Prover-se de mulher de posses que o amasse, ou à sua juventude, e que fechasse os olhos ao seu estilo, que achasse tudo muito bom, bonito, magnífico? De repente, como se estacasse de uma longa, inconsciente e desenfreada corrida, Aldo Or compreendeu que, fosse qual fosse a alternativa eleita, era tudo inútil. Seu nome jamais estaria exposto à quietude das bibliotecas ou à poeira das livrarias. Jamais figuraria como destaque nas vitrines dos livros mais lidos nem dos mais vendidos. Jamais comporia – nem mesmo por adjunto – a sintaxe explicativa, e frustrante, dos títulos acadêmicos. Jamais seria rodapé de citação frisada ou o catalisador de alguma ideia original, como ocorrera a Scliar e seus felinos, sem os quais um romancista canadense e seu livro continuariam prisioneiros do inevitável naufrágio que constitui a vida comum, de dias monótonos de trabalho e tempo gasto a se entreter diante da tevê"
"Peguei sua foto e fiquei olhando. Bonita. O tipo de garota que leva um sujeito como o granjeiro, já decadente e gordo, a pensar em matar. Não cheguei a esperar muito, uns vinte minutos no máximo. Seu corpo esguio e sinuoso veio se aproximando sob a luminosidade amarelada dos postes. Aproveitei a rua quase deserta, só alguns vultos ao longe, saí da sombra e a cerquei. Ia gritar, mas, quando viu a arma em minha mão, congelou os lábios no arredondamento vazio do grito. 'Não tenha medo, foi o granjeiro quem me mandou. Vamos só dar um passeio e conversar. Só isso.' Seu rosto me pareceu atravessado por uma dor longínqua, de antes do mundo. Fiz que andasse até o carro e entrasse"
"Nem uma só linha da história era verdade. O fato, qualquer fato, passava a versão, tão logo fosse escrito ou transcrito. Para ser verdade, a história necessitava continuar acontecendo, ininterruptamente. O presente da história era ela própria; e seu amanhã, em palavras, a sua negação. Não havia passado. Para uma criança, não há passado, até que ela adoece, se recupera e lembra que adoeceu. Seu tio, por exemplo, era agora uma versão dele, Isaac – o que este pensasse e dissesse –, e de todos os seus parentes e amigos. A verdade havia morrido com ele; a verdade, os dias, os amores, os desejos, os segredos, os sonhos; os momentos vividos, irremediavelmente vividos, e que eram agora como bolas de espuma num balde: mortos, soavam impossíveis, indistintos, inimagináveis. Relembrados, eram vagos como o brado de um louco"
"Ao tempo que me esqueço ali, a correr sobre a bicicleta, volto a pensar em Aline, que persiste em mim sem aparente razão, com um permanente signo do fracasso. Ao recordar seu rosto, ele me parece paradoxalmente hostil e necessário. Sem ele, aniquilo-me pouco a pouco, enquanto, ao resgatá-lo, descubro-me consciente, apesar da impotência diante do tempo, do visível esgotamento para a vida. Isso me obriga a concluir que Aline é um peso que me prolonga a trilha neste mundo, em vez de estacioná-la"
"A infância, que em geral é o motivo de todos os problemas adultos, pode ser também, em certa medida, a solução dos impasses existenciais, quando, na idade outonal, superados os exageros e as loucuras, o homem volta a pensar em si mesmo, mas sem egoísmo, sem vaidade"
"Ninguém expõe fracassos, senão em desespero, e ainda assim a esperança é a de que, transformado em linguagem, o insucesso mude, se atenue ou, por uma força quase mística, esboce um futuro melhor, de realizações. Mas não é o que acontece: a linguagem só piora as coisas, pois refaz o tedioso curso de uma infelicidade que antes de tudo deveria ser esquecida"
"(...) distante da superfície das relações, confinado à mudez imposta aos que, ansiosos de expressão mas incapazes de alcançá-la, esbarrem na indiferença do mundo ou fracassem diante de suas próprias limitações ou verdades, viu-se obrigado a mandar, a esmo, sinais de vida de em meio às trevas, incerto quanto aos resultados e sobretudo quanto à reputação positiva ou negativa que haveria de conquistar. O menos surpreendente é concluir que, não obstante a inventividade de sua pilhéria, e ainda que enganado, o mundo não se lhe tornou mais afeito, e ele – afora este momento, neste bar de segunda categoria, que não passa de uma fração mínima de um grão de poeira –, Aldo Or permaneceu anônimo, miragem de uma intenção"
"Um inimigo da poesia e, indiretamente, das mulheres, dos ocasos, do vento falando nas folhas das árvores. Cada frase sua era uma sentença, um pensamento cruel que lembrava a todos que a vida humana não passava do epílogo de um drama insólito num teatro em ruínas"
"– Você não é velho.
– Claro que sou.
(...)
Ele quis explicar que não dizia aquilo para chamar a atenção alheia. Não pretendia, em absoluto, despertar piedade nas pessoas, muito menos aquela reação, notória entre os otimistas, que se inclinaria a fazê-lo mudar de ideia. Simplesmente estava perdendo as forças, ficando frágil e vulnerável. Já não era mais o mesmo homem. As ideias espocavam como luzes e se desenvolviam, mas o corpo, seus membros e órgãos internos não as acompanhavam"
"– Poxa, Sam! Sei não. Trabalhar pra amigo nunca me ocorreu.
– Só quero saber se ela tá com outro cara...
Isaac guardou no bolso o revólver:
– Elas sempre estão, meu amigo. Sempre estão com um e com outro. Com um fazem doce; com o outro, trepam"
Presentes no livro de contos Cidade singular (Kalango, 2013), de Mayrant Gallo, páginas 49, 45, 71, 15, 103, 18, 46, 110, 65, 81, 104, 36, 80 e 92, respectivamente.
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