Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Já disse e repito: – na 'mulher interessante' a beleza é secundária, irrelevante e, mesmo, indesejável. A beleza interessa nos primeiros 15 dias; e morre, em seguida, num insuportável tédio visual. Era preciso que alguém fosse, de mulher em mulher, anunciando: – 'Ser bonita não interessa. Seja interessante.'"
"O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico (...) as variações do nosso histrionismo chegam ao infinito. Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo [Francis] estivesse fazendo apenas uma pose"
"Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor"
"O pior cego é o marxista brasileiro. Ele nada vê e vê menos ainda o próprio Marx. Aliás, não só o marxista. Todos nós fazemos um Marx que nada tem a ver com o próprio (...) O verdadeiro Marx está nas cartas (...) Mente-se mais num artigo, num livro, num discurso. Mas as cartas de Marx (...) são tão dramáticas que ninguém as comenta (...) Gostaria de perguntar aos meus amigos marxistas: – 'Que diriam vocês de um sujeito que fosse ao mesmo tempo imperialista, colonialista, racista e genocida?' Pois esse é o Marx de verdade, não o de nossa fantasia (...) Para ele, o povo miserável deve ser destruído por ser miserável. Diz: – 'povos sem história', 'povos anãos', 'escórias' (...) Por todas as cartas de Marx, não há um vislumbre de amor e só o ódio, o puro ódio. Para ele, há 'povos piolhentos', 'povos de suínos', 'povos de bandidos', que devem ser exterminados. Ele e Engels batem palmas para o imperialismo britânico e norte-americano. Eis o que eu gostaria de notar: – são cartas que Hitler, Himmler, Goebbels assinariam, sem lhes riscar uma vírgula. E os dois têm uma convicção nítida, nítida da superioridade do povo alemão"
"O nosso teatro está cheio de falsos possessos, e repito: – cheio de fragilidades homicidas (...) O Teatro de Arena é o que vive da própria pose, da própria ênfase. O mais modesto lá se julga um gênio nato e hereditário (...) Os inteligentes ameaçam o teatro brasileiro. Um dia, chamaremos os idiotas para salvá-lo"
"O sujeito nasce, vive, ama e morre na rua. Uma manhã, o Carqueja saiu do hotel; e viu, lá numa esquina, um homem estrebuchando. Eis o que imagina: – 'Está morrendo!' Não era fantasia de brasileiro. Estava morrendo. Sempre pensamos que a morte, em qualquer idioma, fosse o acontecimento. Sim, para nós, a morte de um vira-latas tem sua orla de espanto e mistério. Mas Carqueja via, em Calcutá, um homem agonizando. E ninguém parava e, pior, ninguém olhava. Qualquer brasileiro acha o defunto uma figura encantada. E, por isso, o meu amigo não arredou o pé daquela agonia em flor. Por fim, vira-se e diz: – 'Morreu.' Um outro brasileiro, a seu lado, protestou: – 'Não pode ser. Ninguém olha!' Realmente, as pessoas não olhavam, as pessoas apenas passavam, eternamente. No Brasil, quando alguém morre na rua, aparece alguém. Há sempre uma piedade sem nome e sem cara que acende uma vela ao lado do morto"
"Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacilda Becker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la? Outrora, eu diria: – 'Olá, Cacilda', ou 'Bom-dia, Cacilda', ou 'Tudo azul, Cacilda?' Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso ser impessoal rumuroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: – 'Olá, Comissão', 'Olá, Assembleia', 'Olá, Passeata'"
"O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna. Eis o que eu queria dizer: – o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente (...) prometi a mim mesmo não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras"
Trechos presentes no livro de crônicas "A cabra vadia – Novas confissões" (Agir, 2007), de Nelson Rodrigues.
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