É um blues faroeste sertanejo, que narra a saga de um cego milagreiro que traz o belo que transparece humildemente. Uma de suas canções prediletas (assim como Rain da Orange Poem, Emmanuel Mirdad tem predileção por seus blues em F#m), gesta desde sua origem um grande sonho para o compositor baiano: que o mestre do folk brasileiro Zé Ramalho pudesse gravar sua voz de trovão na saga do milagreiro. Quem sabe até um belo clipe cinematográfico, com direito a duelo e tudo – o cego duelando com suas mãos mágicas? A composição foi gravada no EP ID, primeiro trabalho solo de Mirdad, lançado em 2008, com os solos secos, áridos e humildemente precisos de Eric Gomes, e está presente no álbum la sangre, disponibilizado nas plataformas digitais em 2021.
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O Milagre
(Emmanuel Mirdad)
BR-N1I-08-00002
Eu sou um cego, mas enxergo os segredos
A dissimulação não ultrapassa as minhas pálpebras
Na escuridão o que vibra desfaz o enigma
Não me importo se a dúvida me desafia por todo o caminho
Em minha tela tênue desenho garranchos bêbados
Não sei o que é um traço, mas posso suspirá-lo
Adivinho formas que não se encontram na matéria
É o brincar de Deus, criando algo que não serve de nada, audácia!
Eu verei o sol
Por entre as nuvens densas
Eu verei o sol
Perfurando os olhos
Num milagre de um voo cego
O canto de um assum preto
Eu toco a pele e sinto a máscara
Conheço quem nunca diz a verdade
Estão com olhos de medo procurando a saída
Eu vejo com as mãos o cheiro de um gosto podre, o suor quente do mentiroso
Mas o que é belo transparece humildemente
O silêncio das cores me traz paz e graça
Quando eu sinto a manhã quebrando as minhas pálpebras
Quando o calor do dia insiste que eu sobreviva
Eu verei o sol
Por entre as nuvens densas
Eu verei o sol
Perfurando os olhos
Num milagre de um voo cego
O canto de um assum preto
ORIGEM
Em fevereiro de 2001, criei o nome "The Miracle of a Blind Fly" para batizar o futuro 2º CD da minha banda The Orange Poem. Dias depois, o nome "Innocent Child in a Dangerous Quest" acabou tomando seu lugar. Só que o título do milagre de um voo cego ficou no inconsciente. Abril de 2001, manhã de uma sexta-feira 13, completamente solitário e sem nada para fazer (não trabalhava e nem estudava, aguardando de 2ª lista esperando ser chamado pela Facom/Ufba), fui tocar teclado, o que não era comum, pois sempre recorria ao violão. Bebericando as teclas, compus uma linha melódica que inspirou a criação da bucólica frase "I’ll see the sun" ("Eu verei o sol").
Fiquei repetindo a frase diversas vezes, repetindo, repetindo, repetindo, totalmente hipnotizado pela frase que seria profética. Durante a tarde toda (na qual dividi a tarefa de compor com o prazer de assistir um filme moderno e resumido sobre Jesus Cristo – que esqueci o nome), escrevi diretamente em inglês (com a ajuda do surrado dicionário inglês/português do colegial) o poema que ganhou o título de "Miracle of a Blind Fly", materializando o desejo inconsciente de firmá-lo enquanto obra. No final do último verso, munido então com o violão "Alhambra" de minha mãe em punho, compus uma melodia completa em ritmo de ska, que coube direitinho no poema, empolgando-me. O clima ficou tão positivo que até a ex-namorada me ligou para saber notícias, algo raro pelo término recente – um ano atrás, 13 de abril foi o início do namoro que durou pouco.
DE SKA PARA BLUES OU O MELHOR PRESENTE DE 21 ANOS
Sábado à noite, véspera de meu aniversário de 21 anos. Ao invés de sair, preferi ficar ao violão. Banzo. E do banzo nasceu uma melodia "faroeste", um blues cinematográfico em F#m, uma recorrência em minha obra, os ferozes e ácidos blues em fá sustenido menor. E já nasceu com o troncho arranjo de baixo do começo/meio/final. Não coloquei letra, nem gravei. Simplesmente ficou, e o inconsciente topou mais uma vez arquivar de boa pra me futucar depois. Dessa vez, foi rápido. Dois dias depois, na segunda 8 de outubro de 2001, tentei transformar em canção a melodia faroeste na letra de "Tears of Crocodile". Um fracasso – a estrutura dos versos não tinha o tempo necessário para o blues.
Como não tinha mais letras sem melodia disponíveis e não estava inspirado e a fim de escrever uma nova em inglês, o jeito encontrado para não descartar o blues foi cantar a melodia em cima de algum poema já musicado. A escolhida foi "Miracle of a Blind Fly" porque os seus belos versos estavam um pouco comprometidos com a fraca melodia em ska – inclusive nos últimos meses eu já tinha perdido o tesão de tocá-la, além de que o guitarrista Fábio Vilas-Boas não aceitaria que o Orange Poem fosse incorporá-la nessa pegada no próximo disco (lembrando que o 1º disco TOP só foi lançado em 2005).
A sincronia operou e o resultado ficou excelente. Fiz apenas uma mudança nos versos, com a entrada de "Between the dark clouds" no refrão. A emoção rolou forte, ainda mais depois de uma coincidência incrível que aconteceu. O céu estava todo coberto por causa de espessas chuvas que caíam. No instante em que cantei o refrão "I’ll see the sun", o astro rei apareceu por entre as nuvens e iluminou o meu quarto por um bom tempo. Parece mentira, mas aconteceu. A coincidência operou e eu encarei aquilo como uma bênção à forma definitiva de "Miracle of a Blind Fly", do jeito que o meu saudoso pai, Ildegardo Rosa (1931-2011), me sugeriu quando leu o poema do milagre do voo cego: "A melodia tem que ser uma balada". Tá certo, Mestre Dedé. O milagre se materializou como blues.
NO POEMA LARANJA NÃO
Desde que foi composta (inclusive com a melodia inicial em ska), "Miracle of a Blind Fly" ficou no 2º repertório da Orange Poem, mas não tinha sido ensaiada ainda. Na quinta 23 de maio de 2002, rolou o 29º ensaio TOP no estúdio Aquarius (que ficava na Rua Macaúbas, no Rio Vermelho), tarde de estreia do baixista Artur Paranhos no poema laranja. Lá pelo meio do ensaio, resolvi puxar músicas inéditas para dinamizá-lo. A segunda puxada foi justamente o blues milagreiro. Artur foi o primeiro a embarcar, acompanhando-me, antes das análises dos guitarristas Zanom e Fábio Vilas-Boas. O baterista Hosano Lima Jr. trouxe a cozinha e os guitarristas pegaram no embalo. Uma incrível versão foi ensaiada, com aproximadamente oito minutos de muitos solos loucos, sem controle, altas viagens, muito improviso e Fábio "descendo a mão" como nos tempos iniciais da laranja.
Faltava meia-hora para o ensaio terminar quando o repertório do 1º CD foi todo ensaiado. Eu preferi então testar as novas músicas ao invés de revisar as manjadas – mesmo que isso comprometesse a memória musical de Artur. A escolhida foi "Miracle of a Blind Fly", mas desta vez Zanom encrencou. O poema tinha acabado de tocar o blues "Rain" e as comparações ficaram evidentes demais (blues, ambos em F#m, mesma cadência). Zanom foi duro: "Ou Hosano muda o arranjo de bateria, ou mudamos o tom". O baterista mudou o arranjo e eu me calei, achando muito ruim a sugestão. Artur puxou um groove de acordo com a batida e Zanom começou a solar. Uma outra música surgiu e eu continuei calado. Acabou virando uma jam session que descontraiu o final da estreia de Artur no TOP – menos a mim.
No primeiro dia de junho, um sábado, organizei o novo repertório de "Innocent Child in a Dangerous Quest", considerado na época o futuro 2º CD da banda. Chateado com as críticas de Zanom sobre a semelhança com "Rain", retirei do repertório a minha querida canção, arquivando-a para o futuro projeto solo Sad Child (desde abril de 2002 que considerava a existência de um projeto paralelo ao poema laranja com esse título). "Miracle of a Blind Fly" foi registrada na Biblioteca Nacional (letra e partitura) em 25 de agosto de 2003, junto a mais 17 músicas, justamente em uma compilação intitulada "Innocent Child in a Dangerous Quest".
ENTRE O SAD CHILD E O TOP
O primeiro repertório da Orange Poem foi registrado e lançado em 2005 como "Shining Life, Confuse World". Nesse mesmo ano, a banda começou a ensaiar as músicas para encarar uma nova gravação, que durou todo o ano de 2006, gerando o álbum engavetado "Sleep in Snow Shape". Depois de orbitar no meu desejo desde 2002, apenas em 2006 consegui tempo e forças para montar o Sad Child. A primeira tentativa de formar o grupo foi com os amigos Rajasí Vasconcelos (ex-baixista do TOP) e Gabriel Franco, logo no início do ano.
Infelizmente Gabriel cortou abruptamente o projeto, um enorme balde de água fria para mim. Na quinta 13 de abril de 2006, motivado pelo fracasso dessa tentativa, revisitei e reformulei o repertório de minhas composições no Sad Child, separando as músicas em duas categorias: "potenciais canções para álbuns TOP" e "lado B". Lógico que considerei a preciosa "Miracle of a Blind Fly" como "alaranjável", mesmo ainda com a lembrança das críticas de Zanom ativas na memória. Foi arquivada junto a canções como "Someday I'll Escape", "My Impossible Wife" e "Flowers to the Sun" (as três estariam presentes no Sad Child valendo meses depois). Antes de abril terminar, na sexta 28, uma nova reorganização de repertório deixou mesmo "Miracle of a Blind Fly" no repertório do futuro do poema laranja, enquanto que as outras canções migraram para a gaveta como Sad Child. Poucos meses depois, ironicamente o projeto acústico foi pra frente, numa formação com Glauber Guimarães, Rodrigo Pinheiro (ambos gravaram EPs na Orange Poem em 2014) e outros músicos.
Ou seja: ao estar engavetada como Sad Child desde 2002, "Miracle of a Blind Fly" não pode ser gravada no 2º CD TOP, "Sleep in Snow Shape", cuja pré-produção começou em 2005. Quando voltou ao repertório laranja no começo de 2006, perdeu a chance do grupo Sad Child finalmente estabelecido pudesse ensaiar e gravar a canção no seu demo do 2º semestre de 2006. Nem os psicodélicos, nem as folk vozes acústicas. Limbo, então, pois o TOP acabou em março de 2007 e o Sad Child no mesmo ano.
NASCE O MILAGRE
De novo, abril. Desta vez, domingo, dia 15, 2007. Manhã. Depois de acordar cedo e dar uma carona até o TCA para a namorada da época, voltei pra casa e compus a versão em português para "Miracle of a Blind Fly". Na época, começava a produzir a banda Cerveja Café, que montei especialmente para o amigo Rodrigo Damati, e com o fim do Orange Poem em março, senti necessidade de aproveitar o repertório laranja num novo projeto, em português. Comecei no dia anterior, ao versionar a laranja "Clouds, Dreams" em "Emaluquiar-se", e continuei por todo mês de abril, até começar compor novas canções e o repertório "Universo Telecoteco" tomar forma.
Avalio que "O Milagre" foi a melhor versão que fiz. A melodia/harmonia continuou a mesma, com um pequeno acréscimo na primeira parte, mas a letra ficou muito melhor que a original. Enquanto "Miracle..." trazia (já traduzidos) "Nada é dissimulação, a realidade é tão cruel. Minha escuridão tem pincéis de mim mesmo, não importa se não vejo a luz", "O Milagre" melhorou para "A dissimulação não ultrapassa as minhas pálpebras. Na escuridão o que vibra desfaz o enigma, não me importo se a dúvida me desafia por todo o caminho". Uma dizia "Em minha cela eu pinto um mundo incrível, tudo é esperança, minha alma não chora", a outra entupia "Em minha tela tênue desenho garranchos bêbados; não sei o que é um traço, mas posso suspirá-lo. Adivinho formas que não se encontram na matéria. É o brincar de Deus, criando algo que não serve de nada, audácia!". Sem falar na chegada do canto do assum preto, o sol perfurando os olhos. E o sotaque nordestino de profeta do sertão que veio naturalmente afirmado no blues "O Milagre", muito pela força de seus versos e pela paisagem de sua ambiência, parindo imediatamente o sonho de que algum dia o mestre do folk brasileiro Zé Ramalho pudesse gravá-lo.
GAVETA DE NOVO
Cheguei em junho com catorze músicas no repertório chamado de "Laranja Poema" e comecei a escrever um projeto de gravação do meu 1º álbum solo para o Fazcultura (desde o início de 2007 trabalhava como freela na produtora Plataforma de Lançamento, onde me capacitei para elaborar projetos para Leis de Incentivo). Veio o dia de São João e eu compus "Mafuá". Fiquei fascinado pela criação e resolvi incorporá-la no repertório. Mas qual música sairia? – não dava pra colocar mais uma faixa, 14 já era demais.
As covers eram importantes para os argumentos do projeto (músicas de Rodrigo Damati, Marceleza de Castilho, Zanom e minha mãe). As novas músicas estavam no esquema amor novo, xodozinhos, mulher nova-bonita-e-carinhosa. Restavam as versões do TOP. Duas tinham se tornado groove rock, duas samba rock fusion, outra xaxado-rock, não podiam sair por causa dos argumentos "raizeiros", puxados pra música nacional, do projeto. Só restavam então "Gravida", versão para "Melissa", e o blues. Como "Melissa" era a melhor música do Orange Poem, "O Milagre" foi para a gaveta, derrubada pelos versos "Qualquer um escorre num fio vermelho de sangue" de "Mafuá". O álbum passou de "Laranja Poema" para "Universo Telecoteco", foi finalizado como projeto de gravação do meu 1º CD solo e inscrito no Fazcultura no dia 11 de julho (1ª vez que inscrevi um projeto só meu, abrindo caminho para tantos outros – só que desisti dele meses depois, cancelando a tramitação, quando passei por uma breve crise de não querer cantar mais). Por causa de "Mafuá", "O Milagre" ficou fora do repertório da banda Mirdad e a Pedradura (que estreou em estúdio no dia 25 de julho de 2007).
GRAVAÇÃO DO EP ID
No final de 2007, o álbum "Universo Telecoteco" da banda Mirdad e a Pedradura tinha se tornado um EP, chamado "Bolo Doido", com sete músicas gravadas, e a banda tinha mudado o nome para pedradura apenas, com "p" minúsculo. O processo do EP estava em pausa, aguardando que eu resolvesse a questão do sopro – não conseguia arranjar músicos que topassem "colar" na banda; só tinha músico de sopro guigueiro na cidade. Essa situação incômoda de não conseguir desovar as outras composições de meu acervo me fez sondar a criação de outros projetos, como o Castilho Mirdad e o Franco Mirdad, parcerias com os músicos Marceleza de Castilho e Gabriel Franco para a gravação de EPs (que não foram à frente), além de um trabalho solo além da pedradura, assinado apenas como Mirdad, com a gravação de um EP à vista, o "ID".
Juntando uma graninha de trabalhos que fiz na Plataforma de Lançamento e no Troféu Caymmi, queixei para os amigos músicos da pedradura, Artur Paranhos e Eric Gomes, para eles gravarem de graça quatro faixas do EP. Os amigos não arregaram. E a bateria? Edu Marquèz tava complicado, pois tocava no Clube da Malandragem e tava sem tempo – nem convidei. Sorte que o amigo laranja Hosano Lima Jr., que estava morando em Jundiaí-SP desde 2006, daria uma passada em Salvador de novo em janeiro (da última vez rendeu o último ensaio TOP em 05/01/2007), e topou gravar as músicas no esquema brodagem também.
Reencontrei o baterista da Orange Poem, meu grande amigo Hosano, no estúdio de Léo no Caminho das Árvores. Manhã de uma quarta-feira, 16 de janeiro de 2008, único ensaio para a gravação do "EP ID", das 8h às 11h da matina. Um ensaio laranja, pois o guitarrista pedraduro Eric Gomes não pode vir, e eu, Hosano e o baixista Artur Paranhos ensaiamos maciçamente as quatro canções do "EP ID". "O Milagre" fluiu tranquilo, pois blues era uma especialidade nossa no TOP. Três dias depois, no sábado à tarde em Itapuã, rolou o ensaio de cordas com Eric, que tranquilamente criou arranjos para as quatro canções – sempre eficiente. No blues, pedi para que ele gravasse com a guitarra totalmente clean, o máximo de "seca" que pudesse tirar, sempre fazendo pontas e solos, pois a base seria minha ao violão 12 cordas.
Noite de segunda, 21 de janeiro de 2008, ápice do verão, de volta ao Submarino Studios de André Magalhães (onde produzi os registros do Pássaros de Libra e Pedradura), com o talentoso e brodaço Tito Menezes no comando da técnica, eu ao violão 12 cordas, Hosano, Artur e Eric gravamos as quatro músicas do "EP ID" madrugada adentro (começamos de fato às 23h30 e terminamos às 3h30), num clima massa, descontraído pra caralho, várias piadas. Na semana seguinte, noite da terça 29, boca do Carnaval 2008 (que estranhamente começou dois dias depois, ainda em janeiro, e eu nem vi a cara, fugindo da folia, chateando a namorada da época com isso) gravei a voz das quatro canções em 3h, acentuando bastante o sotaque nordestino em "O Milagre", causando estranheza no técnico Tito. Rebati: "é assim mesmo, meu véio, pegada profeta do sertão". Três semanas depois, já dentro de fevereiro, "O Milagre" foi mixada tranquilamente em 1h30, ganhou pequenas reformulações na terça 26, e no primeiro dia de março de 2008, busquei nas mãos de André Magalhães (que fez a masterização) o "EP ID" finalizado - ouça aqui.
EMAIL PARA ZÉ RAMALHO
"O Milagre" milagrosamente pronta, árida como o sertão de sua paisagem. Parti para a produção do meu sonho; primeiro, era preciso que o mestre Zé Ramalho a escutasse. Ainda tateando no mercado profissional da cultura, não tinha nenhum contato que pudesse viabilizar isso. Parti para o modo "queixão". Fucei e encontrei o telefone da produtora do artista. Telefonei e fui informado para mandar a música por email. Ou seja, para cair no limbo. Mas na época eu não sabia disso e fui esperançoso enviar a MP3 do blues por email na segunda, 10 de março de 2008 (mesmo dia em que fundei o embrião da Flor da Cruz, a primeira tentativa de abrir uma empresa de produção).
A íntegra do email, cujo assunto foi "Música "O Milagre", p/ Zé Ramalho ouvir", foi: "Bom dia, Sou Emmanuel Mirdad, compositor e produtor de Salvador-Ba. Gostaria que vcs avaliassem esta música minha, "O Milagre", que compus imaginando que o grande Zé Ramalho pudesse cantá-la. Conforme fui informado pela Sra. Caroline, envio "O Milagre" por aqui. Espero que vcs me deem o privilégio de ser escutado! Grato pela atenção, um fã, Emmanuel Mirdad. PS - abaixo segue a letra". Nunca tive uma resposta, nem ao menos um recebido. Entendi que era normal ignorar emails como esse. Eu era mais um zé ninguém dentro do universo de fãs do mestre Zé.
CARREIRA SOLO NA GAVETA
Antes de março de dois mil e oito acabar, consegui acertar uma banda para a minha carreira solo. Da Cerveja Café (banda que formei para Rodrigo Damati em 2007), os amigos Felipe Dieder (bateria) e Marceleza de Castilho (guitarra), que indicou Rafael Leone para o baixo. Completando a guiga, o pedraduro guitarrista Eric Gomes. Montei um repertório de autorais e covers (que reunia de Radiohead a Belchior), e parti para o 1º (e único) ensaio de harmonia no domingo 6 de abril, casa de Eric em Itapuã. Ensaiamos quatro músicas ("O Milagre" não rolou) e tivemos de encerrar abruptamente por causa de um ataque terrorista de muriçocas. Nem deu tempo para empolgar: três dias depois, Eric saiu da guiga.
Dois mil e oito foi um ano de muita ebulição de novos projetos. Criei várias propostas, iniciando-as ao mesmo tempo. Uma delas foi o show "Organismo", que reuniria os artistas Tiganá Santana, Cal Ribeiro, o laranja Zanom e eu. Só que na 2ª reunião do projeto, fui limado por Cal Ribeiro e acabei concordando, pois funcionaria melhor como produtor que artista – havia uma discrepância vocal muito grande entre a minha performance vocal e a de Cal/Tiganá (mesmo sem ser cantor, Zanom sempre teve mais presença artística que eu para ser vendido como artista). Essa limada somada ao trabalho de tocar vários projetos como o Prêmio Bahia de Todos os Rocks, a peça musical "Mestre Dedé e os Candeeiros da Ilusão" do grupo LÄZRE, a gravação do Projeto Zanom e a carreira de Tiganá Santana (ganhamos um edital e iríamos gravar seu 1º álbum), entre muitos outros, me fizeram desistir da carreira solo enquanto Mirdad. Com isso, "O Milagre" e o "EP ID" foram para a gaveta.
O BLUES NA PEDRADURA
No final de setembro de 2008, finalmente comecei a receber pelo meu trabalho na coordenação do evento Prêmio Bahia de Todos os Rocks. O que eu fiz? Investi na finalização do álbum da Pedradura. Com o "EP ID" na gaveta e a mudança do baterista Edu Marquéz para a França, resolvi voltar a banda com o nome "Mirdad e a Pedradura", acrescentando as músicas do "ID" no EP "Bolo Doido", formando assim o álbum completo "Universo Telecoteco", com onze faixas. Como as canções do "ID" eram diferentes das do "Bolo Doido" (gravadas em épocas distintas, bateristas diferentes), resolvi colocá-las nas últimas faixas do disco. Assim, "O Milagre" ficou na faixa 10, uma forçação de barra, pois sonoramente a única canção com estilo pedraduro do "ID" era "Nu, Tempestade" (tanto que ganhou arranjos meus e a gravação do naipe de sopro como outras do EP "Bolo Doido").
Essa volta foi pífia, pois "Universo Telecoteco" foi disponibilizado na internet e só. Nenhum show de lançamento. Na verdade, nenhum show. E os anos enquanto produtor cultural à frente da empresa Putzgrillo Cultura engavetaram minha carreira artística.
A VOLTA DO EP ID E O ENCONTRO COM ZÉ RAMALHO
2014 é o ano que marca a minha volta como autor. Retomei a banda The Orange Poem, entrei na editora Cousa (renovando minha carreira literária), e comecei a abrir uma produtora de audiovisual. Aproveitando, reorganizei meu acervo em fevereiro. Com isso, o álbum da Pedradura (o Mirdad antes do nome caiu de novo) voltou a ter sete faixas (mas continua com o nome "Universo Telecoteco") e o "EP ID" retornou, com o acréscimo do single "El'eu". Disponibilizei tudo no Soundcloud e no Youtube. E recomecei com o sonho de apresentar "O Milagre" ao mestre Zé Ramalho. Coincidentemente o show dele com a Estakazero foi confirmado para o final de abril, e eu senti o doce sabor da sincronia: é agora!
Pois aconteceu, rapidamente. "Ontem realizei um sonho. Conheci rapidamente o mestre Zé Ramalho, dei-lhe de presente a biografia do mestre Walter Smetak (escrita pela neta Jessica Smetak) e o sonho: entreguei-lhe um CD com a minha composição O Milagre, para que conhecesse, sugerindo o milagre que seria ter a voz de trovão do maior folk man brasileiro nessa canção. Quando os versos foram melhorados para a língua pátria, percebi que a força do sotaque nordestino era extremamente necessária à sua interpretação. E imediatamente tive a visão: Zé Ramalho cantando como um profeta a jornada do cego milagreiro. E veio o clipe pronto: num esquema faroeste no sertão, o cego duelando não com armas, e sim com suas mãos divinas – ao invés de balas, o encanto que purificava a violência e a transmutava em sereno. Quero agradecer de coração o empenho da amiga Fernanda Matos, que viabilizou com garra meu acesso, e à Irá Carvalho que, na hora certa, conseguiu os 5 min no camarim antes do showzaço de ontem na Paralela. Valeuzaço!"
Ouça no Deezer aqui
O Milagre
(Emmanuel Mirdad)
BR-N1I-08-00002
Eu sou um cego, mas enxergo os segredos
A dissimulação não ultrapassa as minhas pálpebras
Na escuridão o que vibra desfaz o enigma
Não me importo se a dúvida me desafia por todo o caminho
Em minha tela tênue desenho garranchos bêbados
Não sei o que é um traço, mas posso suspirá-lo
Adivinho formas que não se encontram na matéria
É o brincar de Deus, criando algo que não serve de nada, audácia!
Eu verei o sol
Por entre as nuvens densas
Eu verei o sol
Perfurando os olhos
Num milagre de um voo cego
O canto de um assum preto
Eu toco a pele e sinto a máscara
Conheço quem nunca diz a verdade
Estão com olhos de medo procurando a saída
Eu vejo com as mãos o cheiro de um gosto podre, o suor quente do mentiroso
Mas o que é belo transparece humildemente
O silêncio das cores me traz paz e graça
Quando eu sinto a manhã quebrando as minhas pálpebras
Quando o calor do dia insiste que eu sobreviva
Eu verei o sol
Por entre as nuvens densas
Eu verei o sol
Perfurando os olhos
Num milagre de um voo cego
O canto de um assum preto
Faixa 02 - Mirdad - EP ID (2008) | Faixa 05 - Mirdad e a pedradura - la sangre (2021) | Composta e produzida por Emmanuel Mirdad | Mirdad - voz e violão 12 cordas | Eric Gomes - guitarra | Hosano Lima Jr. - bateria | Artur Paranhos - baixo | Gravado e Mixado por Tito Menezes e Masterizado por André Magalhães no Submarino Studios em Salvador/BA | Arte encarte: Emmanuel Mirdad (PS: "la sangre" a foto é de Regina Rosa)
ORIGEM
Em fevereiro de 2001, criei o nome "The Miracle of a Blind Fly" para batizar o futuro 2º CD da minha banda The Orange Poem. Dias depois, o nome "Innocent Child in a Dangerous Quest" acabou tomando seu lugar. Só que o título do milagre de um voo cego ficou no inconsciente. Abril de 2001, manhã de uma sexta-feira 13, completamente solitário e sem nada para fazer (não trabalhava e nem estudava, aguardando de 2ª lista esperando ser chamado pela Facom/Ufba), fui tocar teclado, o que não era comum, pois sempre recorria ao violão. Bebericando as teclas, compus uma linha melódica que inspirou a criação da bucólica frase "I’ll see the sun" ("Eu verei o sol").
Fiquei repetindo a frase diversas vezes, repetindo, repetindo, repetindo, totalmente hipnotizado pela frase que seria profética. Durante a tarde toda (na qual dividi a tarefa de compor com o prazer de assistir um filme moderno e resumido sobre Jesus Cristo – que esqueci o nome), escrevi diretamente em inglês (com a ajuda do surrado dicionário inglês/português do colegial) o poema que ganhou o título de "Miracle of a Blind Fly", materializando o desejo inconsciente de firmá-lo enquanto obra. No final do último verso, munido então com o violão "Alhambra" de minha mãe em punho, compus uma melodia completa em ritmo de ska, que coube direitinho no poema, empolgando-me. O clima ficou tão positivo que até a ex-namorada me ligou para saber notícias, algo raro pelo término recente – um ano atrás, 13 de abril foi o início do namoro que durou pouco.
Original de Miracle of a Blind Fly, de Emmanuel Mirdad
DE SKA PARA BLUES OU O MELHOR PRESENTE DE 21 ANOS
Sábado à noite, véspera de meu aniversário de 21 anos. Ao invés de sair, preferi ficar ao violão. Banzo. E do banzo nasceu uma melodia "faroeste", um blues cinematográfico em F#m, uma recorrência em minha obra, os ferozes e ácidos blues em fá sustenido menor. E já nasceu com o troncho arranjo de baixo do começo/meio/final. Não coloquei letra, nem gravei. Simplesmente ficou, e o inconsciente topou mais uma vez arquivar de boa pra me futucar depois. Dessa vez, foi rápido. Dois dias depois, na segunda 8 de outubro de 2001, tentei transformar em canção a melodia faroeste na letra de "Tears of Crocodile". Um fracasso – a estrutura dos versos não tinha o tempo necessário para o blues.
Como não tinha mais letras sem melodia disponíveis e não estava inspirado e a fim de escrever uma nova em inglês, o jeito encontrado para não descartar o blues foi cantar a melodia em cima de algum poema já musicado. A escolhida foi "Miracle of a Blind Fly" porque os seus belos versos estavam um pouco comprometidos com a fraca melodia em ska – inclusive nos últimos meses eu já tinha perdido o tesão de tocá-la, além de que o guitarrista Fábio Vilas-Boas não aceitaria que o Orange Poem fosse incorporá-la nessa pegada no próximo disco (lembrando que o 1º disco TOP só foi lançado em 2005).
A sincronia operou e o resultado ficou excelente. Fiz apenas uma mudança nos versos, com a entrada de "Between the dark clouds" no refrão. A emoção rolou forte, ainda mais depois de uma coincidência incrível que aconteceu. O céu estava todo coberto por causa de espessas chuvas que caíam. No instante em que cantei o refrão "I’ll see the sun", o astro rei apareceu por entre as nuvens e iluminou o meu quarto por um bom tempo. Parece mentira, mas aconteceu. A coincidência operou e eu encarei aquilo como uma bênção à forma definitiva de "Miracle of a Blind Fly", do jeito que o meu saudoso pai, Ildegardo Rosa (1931-2011), me sugeriu quando leu o poema do milagre do voo cego: "A melodia tem que ser uma balada". Tá certo, Mestre Dedé. O milagre se materializou como blues.
Orange Poem em 2002, antes de um show na Facom/Ufba
NO POEMA LARANJA NÃO
Desde que foi composta (inclusive com a melodia inicial em ska), "Miracle of a Blind Fly" ficou no 2º repertório da Orange Poem, mas não tinha sido ensaiada ainda. Na quinta 23 de maio de 2002, rolou o 29º ensaio TOP no estúdio Aquarius (que ficava na Rua Macaúbas, no Rio Vermelho), tarde de estreia do baixista Artur Paranhos no poema laranja. Lá pelo meio do ensaio, resolvi puxar músicas inéditas para dinamizá-lo. A segunda puxada foi justamente o blues milagreiro. Artur foi o primeiro a embarcar, acompanhando-me, antes das análises dos guitarristas Zanom e Fábio Vilas-Boas. O baterista Hosano Lima Jr. trouxe a cozinha e os guitarristas pegaram no embalo. Uma incrível versão foi ensaiada, com aproximadamente oito minutos de muitos solos loucos, sem controle, altas viagens, muito improviso e Fábio "descendo a mão" como nos tempos iniciais da laranja.
Faltava meia-hora para o ensaio terminar quando o repertório do 1º CD foi todo ensaiado. Eu preferi então testar as novas músicas ao invés de revisar as manjadas – mesmo que isso comprometesse a memória musical de Artur. A escolhida foi "Miracle of a Blind Fly", mas desta vez Zanom encrencou. O poema tinha acabado de tocar o blues "Rain" e as comparações ficaram evidentes demais (blues, ambos em F#m, mesma cadência). Zanom foi duro: "Ou Hosano muda o arranjo de bateria, ou mudamos o tom". O baterista mudou o arranjo e eu me calei, achando muito ruim a sugestão. Artur puxou um groove de acordo com a batida e Zanom começou a solar. Uma outra música surgiu e eu continuei calado. Acabou virando uma jam session que descontraiu o final da estreia de Artur no TOP – menos a mim.
No primeiro dia de junho, um sábado, organizei o novo repertório de "Innocent Child in a Dangerous Quest", considerado na época o futuro 2º CD da banda. Chateado com as críticas de Zanom sobre a semelhança com "Rain", retirei do repertório a minha querida canção, arquivando-a para o futuro projeto solo Sad Child (desde abril de 2002 que considerava a existência de um projeto paralelo ao poema laranja com esse título). "Miracle of a Blind Fly" foi registrada na Biblioteca Nacional (letra e partitura) em 25 de agosto de 2003, junto a mais 17 músicas, justamente em uma compilação intitulada "Innocent Child in a Dangerous Quest".
Trecho inicial da partitura de "Miracle of a Blind Fly", de Emmanuel Mirdad, transcrita de punho por sua mãe Martha Anísia.
ENTRE O SAD CHILD E O TOP
O primeiro repertório da Orange Poem foi registrado e lançado em 2005 como "Shining Life, Confuse World". Nesse mesmo ano, a banda começou a ensaiar as músicas para encarar uma nova gravação, que durou todo o ano de 2006, gerando o álbum engavetado "Sleep in Snow Shape". Depois de orbitar no meu desejo desde 2002, apenas em 2006 consegui tempo e forças para montar o Sad Child. A primeira tentativa de formar o grupo foi com os amigos Rajasí Vasconcelos (ex-baixista do TOP) e Gabriel Franco, logo no início do ano.
Infelizmente Gabriel cortou abruptamente o projeto, um enorme balde de água fria para mim. Na quinta 13 de abril de 2006, motivado pelo fracasso dessa tentativa, revisitei e reformulei o repertório de minhas composições no Sad Child, separando as músicas em duas categorias: "potenciais canções para álbuns TOP" e "lado B". Lógico que considerei a preciosa "Miracle of a Blind Fly" como "alaranjável", mesmo ainda com a lembrança das críticas de Zanom ativas na memória. Foi arquivada junto a canções como "Someday I'll Escape", "My Impossible Wife" e "Flowers to the Sun" (as três estariam presentes no Sad Child valendo meses depois). Antes de abril terminar, na sexta 28, uma nova reorganização de repertório deixou mesmo "Miracle of a Blind Fly" no repertório do futuro do poema laranja, enquanto que as outras canções migraram para a gaveta como Sad Child. Poucos meses depois, ironicamente o projeto acústico foi pra frente, numa formação com Glauber Guimarães, Rodrigo Pinheiro (ambos gravaram EPs na Orange Poem em 2014) e outros músicos.
Ou seja: ao estar engavetada como Sad Child desde 2002, "Miracle of a Blind Fly" não pode ser gravada no 2º CD TOP, "Sleep in Snow Shape", cuja pré-produção começou em 2005. Quando voltou ao repertório laranja no começo de 2006, perdeu a chance do grupo Sad Child finalmente estabelecido pudesse ensaiar e gravar a canção no seu demo do 2º semestre de 2006. Nem os psicodélicos, nem as folk vozes acústicas. Limbo, então, pois o TOP acabou em março de 2007 e o Sad Child no mesmo ano.
Rascunho original onde Emmanuel Mirdad escreveu "O Milagre"
NASCE O MILAGRE
De novo, abril. Desta vez, domingo, dia 15, 2007. Manhã. Depois de acordar cedo e dar uma carona até o TCA para a namorada da época, voltei pra casa e compus a versão em português para "Miracle of a Blind Fly". Na época, começava a produzir a banda Cerveja Café, que montei especialmente para o amigo Rodrigo Damati, e com o fim do Orange Poem em março, senti necessidade de aproveitar o repertório laranja num novo projeto, em português. Comecei no dia anterior, ao versionar a laranja "Clouds, Dreams" em "Emaluquiar-se", e continuei por todo mês de abril, até começar compor novas canções e o repertório "Universo Telecoteco" tomar forma.
Avalio que "O Milagre" foi a melhor versão que fiz. A melodia/harmonia continuou a mesma, com um pequeno acréscimo na primeira parte, mas a letra ficou muito melhor que a original. Enquanto "Miracle..." trazia (já traduzidos) "Nada é dissimulação, a realidade é tão cruel. Minha escuridão tem pincéis de mim mesmo, não importa se não vejo a luz", "O Milagre" melhorou para "A dissimulação não ultrapassa as minhas pálpebras. Na escuridão o que vibra desfaz o enigma, não me importo se a dúvida me desafia por todo o caminho". Uma dizia "Em minha cela eu pinto um mundo incrível, tudo é esperança, minha alma não chora", a outra entupia "Em minha tela tênue desenho garranchos bêbados; não sei o que é um traço, mas posso suspirá-lo. Adivinho formas que não se encontram na matéria. É o brincar de Deus, criando algo que não serve de nada, audácia!". Sem falar na chegada do canto do assum preto, o sol perfurando os olhos. E o sotaque nordestino de profeta do sertão que veio naturalmente afirmado no blues "O Milagre", muito pela força de seus versos e pela paisagem de sua ambiência, parindo imediatamente o sonho de que algum dia o mestre do folk brasileiro Zé Ramalho pudesse gravá-lo.
GAVETA DE NOVO
Cheguei em junho com catorze músicas no repertório chamado de "Laranja Poema" e comecei a escrever um projeto de gravação do meu 1º álbum solo para o Fazcultura (desde o início de 2007 trabalhava como freela na produtora Plataforma de Lançamento, onde me capacitei para elaborar projetos para Leis de Incentivo). Veio o dia de São João e eu compus "Mafuá". Fiquei fascinado pela criação e resolvi incorporá-la no repertório. Mas qual música sairia? – não dava pra colocar mais uma faixa, 14 já era demais.
As covers eram importantes para os argumentos do projeto (músicas de Rodrigo Damati, Marceleza de Castilho, Zanom e minha mãe). As novas músicas estavam no esquema amor novo, xodozinhos, mulher nova-bonita-e-carinhosa. Restavam as versões do TOP. Duas tinham se tornado groove rock, duas samba rock fusion, outra xaxado-rock, não podiam sair por causa dos argumentos "raizeiros", puxados pra música nacional, do projeto. Só restavam então "Gravida", versão para "Melissa", e o blues. Como "Melissa" era a melhor música do Orange Poem, "O Milagre" foi para a gaveta, derrubada pelos versos "Qualquer um escorre num fio vermelho de sangue" de "Mafuá". O álbum passou de "Laranja Poema" para "Universo Telecoteco", foi finalizado como projeto de gravação do meu 1º CD solo e inscrito no Fazcultura no dia 11 de julho (1ª vez que inscrevi um projeto só meu, abrindo caminho para tantos outros – só que desisti dele meses depois, cancelando a tramitação, quando passei por uma breve crise de não querer cantar mais). Por causa de "Mafuá", "O Milagre" ficou fora do repertório da banda Mirdad e a Pedradura (que estreou em estúdio no dia 25 de julho de 2007).
Capa do EP ID (2008), de Mirdad
GRAVAÇÃO DO EP ID
No final de 2007, o álbum "Universo Telecoteco" da banda Mirdad e a Pedradura tinha se tornado um EP, chamado "Bolo Doido", com sete músicas gravadas, e a banda tinha mudado o nome para pedradura apenas, com "p" minúsculo. O processo do EP estava em pausa, aguardando que eu resolvesse a questão do sopro – não conseguia arranjar músicos que topassem "colar" na banda; só tinha músico de sopro guigueiro na cidade. Essa situação incômoda de não conseguir desovar as outras composições de meu acervo me fez sondar a criação de outros projetos, como o Castilho Mirdad e o Franco Mirdad, parcerias com os músicos Marceleza de Castilho e Gabriel Franco para a gravação de EPs (que não foram à frente), além de um trabalho solo além da pedradura, assinado apenas como Mirdad, com a gravação de um EP à vista, o "ID".
Juntando uma graninha de trabalhos que fiz na Plataforma de Lançamento e no Troféu Caymmi, queixei para os amigos músicos da pedradura, Artur Paranhos e Eric Gomes, para eles gravarem de graça quatro faixas do EP. Os amigos não arregaram. E a bateria? Edu Marquèz tava complicado, pois tocava no Clube da Malandragem e tava sem tempo – nem convidei. Sorte que o amigo laranja Hosano Lima Jr., que estava morando em Jundiaí-SP desde 2006, daria uma passada em Salvador de novo em janeiro (da última vez rendeu o último ensaio TOP em 05/01/2007), e topou gravar as músicas no esquema brodagem também.
Reencontrei o baterista da Orange Poem, meu grande amigo Hosano, no estúdio de Léo no Caminho das Árvores. Manhã de uma quarta-feira, 16 de janeiro de 2008, único ensaio para a gravação do "EP ID", das 8h às 11h da matina. Um ensaio laranja, pois o guitarrista pedraduro Eric Gomes não pode vir, e eu, Hosano e o baixista Artur Paranhos ensaiamos maciçamente as quatro canções do "EP ID". "O Milagre" fluiu tranquilo, pois blues era uma especialidade nossa no TOP. Três dias depois, no sábado à tarde em Itapuã, rolou o ensaio de cordas com Eric, que tranquilamente criou arranjos para as quatro canções – sempre eficiente. No blues, pedi para que ele gravasse com a guitarra totalmente clean, o máximo de "seca" que pudesse tirar, sempre fazendo pontas e solos, pois a base seria minha ao violão 12 cordas.
Noite de segunda, 21 de janeiro de 2008, ápice do verão, de volta ao Submarino Studios de André Magalhães (onde produzi os registros do Pássaros de Libra e Pedradura), com o talentoso e brodaço Tito Menezes no comando da técnica, eu ao violão 12 cordas, Hosano, Artur e Eric gravamos as quatro músicas do "EP ID" madrugada adentro (começamos de fato às 23h30 e terminamos às 3h30), num clima massa, descontraído pra caralho, várias piadas. Na semana seguinte, noite da terça 29, boca do Carnaval 2008 (que estranhamente começou dois dias depois, ainda em janeiro, e eu nem vi a cara, fugindo da folia, chateando a namorada da época com isso) gravei a voz das quatro canções em 3h, acentuando bastante o sotaque nordestino em "O Milagre", causando estranheza no técnico Tito. Rebati: "é assim mesmo, meu véio, pegada profeta do sertão". Três semanas depois, já dentro de fevereiro, "O Milagre" foi mixada tranquilamente em 1h30, ganhou pequenas reformulações na terça 26, e no primeiro dia de março de 2008, busquei nas mãos de André Magalhães (que fez a masterização) o "EP ID" finalizado - ouça aqui.
Zé Ramalho, o grande profeta folkman brasileiro (foto: Internet)
EMAIL PARA ZÉ RAMALHO
"O Milagre" milagrosamente pronta, árida como o sertão de sua paisagem. Parti para a produção do meu sonho; primeiro, era preciso que o mestre Zé Ramalho a escutasse. Ainda tateando no mercado profissional da cultura, não tinha nenhum contato que pudesse viabilizar isso. Parti para o modo "queixão". Fucei e encontrei o telefone da produtora do artista. Telefonei e fui informado para mandar a música por email. Ou seja, para cair no limbo. Mas na época eu não sabia disso e fui esperançoso enviar a MP3 do blues por email na segunda, 10 de março de 2008 (mesmo dia em que fundei o embrião da Flor da Cruz, a primeira tentativa de abrir uma empresa de produção).
A íntegra do email, cujo assunto foi "Música "O Milagre", p/ Zé Ramalho ouvir", foi: "Bom dia, Sou Emmanuel Mirdad, compositor e produtor de Salvador-Ba. Gostaria que vcs avaliassem esta música minha, "O Milagre", que compus imaginando que o grande Zé Ramalho pudesse cantá-la. Conforme fui informado pela Sra. Caroline, envio "O Milagre" por aqui. Espero que vcs me deem o privilégio de ser escutado! Grato pela atenção, um fã, Emmanuel Mirdad. PS - abaixo segue a letra". Nunca tive uma resposta, nem ao menos um recebido. Entendi que era normal ignorar emails como esse. Eu era mais um zé ninguém dentro do universo de fãs do mestre Zé.
CARREIRA SOLO NA GAVETA
Antes de março de dois mil e oito acabar, consegui acertar uma banda para a minha carreira solo. Da Cerveja Café (banda que formei para Rodrigo Damati em 2007), os amigos Felipe Dieder (bateria) e Marceleza de Castilho (guitarra), que indicou Rafael Leone para o baixo. Completando a guiga, o pedraduro guitarrista Eric Gomes. Montei um repertório de autorais e covers (que reunia de Radiohead a Belchior), e parti para o 1º (e único) ensaio de harmonia no domingo 6 de abril, casa de Eric em Itapuã. Ensaiamos quatro músicas ("O Milagre" não rolou) e tivemos de encerrar abruptamente por causa de um ataque terrorista de muriçocas. Nem deu tempo para empolgar: três dias depois, Eric saiu da guiga.
Entrevista para o DVD da 1ª edição do Prêmio Bahia de Todos os Rocks
Dois mil e oito foi um ano de muita ebulição de novos projetos. Criei várias propostas, iniciando-as ao mesmo tempo. Uma delas foi o show "Organismo", que reuniria os artistas Tiganá Santana, Cal Ribeiro, o laranja Zanom e eu. Só que na 2ª reunião do projeto, fui limado por Cal Ribeiro e acabei concordando, pois funcionaria melhor como produtor que artista – havia uma discrepância vocal muito grande entre a minha performance vocal e a de Cal/Tiganá (mesmo sem ser cantor, Zanom sempre teve mais presença artística que eu para ser vendido como artista). Essa limada somada ao trabalho de tocar vários projetos como o Prêmio Bahia de Todos os Rocks, a peça musical "Mestre Dedé e os Candeeiros da Ilusão" do grupo LÄZRE, a gravação do Projeto Zanom e a carreira de Tiganá Santana (ganhamos um edital e iríamos gravar seu 1º álbum), entre muitos outros, me fizeram desistir da carreira solo enquanto Mirdad. Com isso, "O Milagre" e o "EP ID" foram para a gaveta.
No final de setembro de 2008, finalmente comecei a receber pelo meu trabalho na coordenação do evento Prêmio Bahia de Todos os Rocks. O que eu fiz? Investi na finalização do álbum da Pedradura. Com o "EP ID" na gaveta e a mudança do baterista Edu Marquéz para a França, resolvi voltar a banda com o nome "Mirdad e a Pedradura", acrescentando as músicas do "ID" no EP "Bolo Doido", formando assim o álbum completo "Universo Telecoteco", com onze faixas. Como as canções do "ID" eram diferentes das do "Bolo Doido" (gravadas em épocas distintas, bateristas diferentes), resolvi colocá-las nas últimas faixas do disco. Assim, "O Milagre" ficou na faixa 10, uma forçação de barra, pois sonoramente a única canção com estilo pedraduro do "ID" era "Nu, Tempestade" (tanto que ganhou arranjos meus e a gravação do naipe de sopro como outras do EP "Bolo Doido").
Essa volta foi pífia, pois "Universo Telecoteco" foi disponibilizado na internet e só. Nenhum show de lançamento. Na verdade, nenhum show. E os anos enquanto produtor cultural à frente da empresa Putzgrillo Cultura engavetaram minha carreira artística.
30 de abril de 2014, quando Emmanuel Mirdad ofereceu a música "O Milagre" para o mestre Zé Ramalho conhecer.
A VOLTA DO EP ID E O ENCONTRO COM ZÉ RAMALHO
2014 é o ano que marca a minha volta como autor. Retomei a banda The Orange Poem, entrei na editora Cousa (renovando minha carreira literária), e comecei a abrir uma produtora de audiovisual. Aproveitando, reorganizei meu acervo em fevereiro. Com isso, o álbum da Pedradura (o Mirdad antes do nome caiu de novo) voltou a ter sete faixas (mas continua com o nome "Universo Telecoteco") e o "EP ID" retornou, com o acréscimo do single "El'eu". Disponibilizei tudo no Soundcloud e no Youtube. E recomecei com o sonho de apresentar "O Milagre" ao mestre Zé Ramalho. Coincidentemente o show dele com a Estakazero foi confirmado para o final de abril, e eu senti o doce sabor da sincronia: é agora!
Pois aconteceu, rapidamente. "Ontem realizei um sonho. Conheci rapidamente o mestre Zé Ramalho, dei-lhe de presente a biografia do mestre Walter Smetak (escrita pela neta Jessica Smetak) e o sonho: entreguei-lhe um CD com a minha composição O Milagre, para que conhecesse, sugerindo o milagre que seria ter a voz de trovão do maior folk man brasileiro nessa canção. Quando os versos foram melhorados para a língua pátria, percebi que a força do sotaque nordestino era extremamente necessária à sua interpretação. E imediatamente tive a visão: Zé Ramalho cantando como um profeta a jornada do cego milagreiro. E veio o clipe pronto: num esquema faroeste no sertão, o cego duelando não com armas, e sim com suas mãos divinas – ao invés de balas, o encanto que purificava a violência e a transmutava em sereno. Quero agradecer de coração o empenho da amiga Fernanda Matos, que viabilizou com garra meu acesso, e à Irá Carvalho que, na hora certa, conseguiu os 5 min no camarim antes do showzaço de ontem na Paralela. Valeuzaço!"
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