Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"O Brasil é um adiamento infinito"
"Em Hong-Kong, o colega foi testemunha da mais linda e silenciosa história de amor (...) certo milionário brasileiro foi traído pela esposa (...) Resolveu viajar para a China, certo de que a distância é o esquecimento (...) Um dia, apanhou o automóvel e correu como um louco (...) Desce e percorre, a pé, uma aldeia miseráve (...) Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê surgir, como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio de sordidez tamanha, parecia um delírio. O amor começou ali. Um amor que não tinha fim, nem princípio, que começara muito antes e continuaria muito depois. Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro. Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi percebendo esta verdade: – são as palavras que separam"
"O poeta Murilo Mendes foi ao Municipal (...) para uma das primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna impressionante de casacas e decotes. E cada decote ou casaca humilhava e agredia o seu traje de passeio, surrado e sebento (...) Não teve mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na plateia. Na frisa, o embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais nada. O elenco, no palco, esbugalhou-se (...) Era uma experiência inédita aquele guarda-chuva solitário e sobrenatural. E não havia sequer uma goteira que o justificasse (...) Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e alucinatório? (...) súbito, aquelas casacas e aqueles decotes começaram a aplaudir. Primeiro, uma meia dúzia de palmas ainda envergonhadas e pioneiras. Depois, explodiu a unanimidade. Pela primeira vez, um guarda-chuva foi longamente ovacionado, como um tenor italiano"
"Quanto à 'opção', não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados. É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de ideias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas"
"O ser humano não anda de quatro, nem está no bosque urrando à lua. E por quê? Resposta: – porque somos responsáveis. É a responsabilidade o nosso mistério e a nossa salvação"
"O tal ódio aos americanos não chega a ser um sentimento, não chega a ser uma paixão. É uma defesa (...) Eis a verdade: – nós precisamos do imperialismo norte-americano, assim como um retirante precisa de sua rapadura. Os Estados Unidos são exatamente a nossa rapadura (...) é a nossa retórica. Quem nos justifica e quem nos absolve? O imperialismo. Reparem: ninguém aqui se mexe. Há todo um Brasil por fazer. Sim, todos os dias, o Brasil espera que nós o façamos (...) teríamos nós que expulsar o imperialismo. Mas expulsar como, se é ele que justifica a nossa inércia, a nossa inépcia, a nossa omissão (...) Queremos que o imperialismo ocupe ainda mais o país. Se tal ocorresse, eis o que faria o brasileiro: – durante o dia, não sairia da praia"
"Eu queria demonstrar o óbvio, isto é, que a televisão fascina qualquer um. O sujeito pode ser rei, ou rainha, ou anjo, ou santo. Mas atravessa três desertos para entrar no programa do Chacrinha (...) Cabe então a pergunta: – e por que esse deslumbramento? Primeiro, porque, normalmente, cada um de nós é um ator sem plateia. Representamos, no máximo, para uma namorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos, meia dúzia de credores. E o sujeito que entra no Chacrinha sai de lá célebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulminante é a maior delícia terrena. E quem fala para tantos pode, com uma frase, fundar uma Religião, com outra frase, derrubar um Império, com uma terceira frase, decapitar várias marias antonietas"
"Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade. Tais 'entrevistas imaginárias' só ocorrem à meia-noite em ponto. Eis a paisagem obrigatória: – um terreno baldio que tenha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e D. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia"
"Esse povo tá vivendo uma época de pouquíssimo amor. O ódio é mais promovido do que marca de refrigerante (...) um filho berrou para o pai: – 'Te parto a cara! Te parto a cara!' e só não se engalfinharam, à vista da mãe, das tias, dos cunhados, dos outros filhos e das visitas, porque (...) o velho capitulou. 'Ficou por isso mesmo?', perguntará o leitor. Não, não ficou por isso mesmo. Num dos episódios, o pai chamou o filho e deu-lhe um Galaxie"
"Por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos"
Trechos presentes no livro de crônicas "A cabra vadia – Novas confissões" (Agir, 2007), de Nelson Rodrigues.
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