Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Minha família morava diante do mar. Mas o mar, antes de ser paisagem e som, antes de ser concha, antes de ser espuma – o mar foi cheiro. Há ainda um cavalo na minha infância profunda. Mas também o cavalo foi cheiro. Antes de ser uma figura plástica, elástica, com espuma na ventas – o cavalo foi aroma como o mar"
"Se as novas gerações me perguntassem o que era 'A vida como ela é...', diria: – 'Era sempre a história de uma infiel.' Apenas isso. E o leitor era um fascinado. Comprava a Última Hora para conhecer a adúltera do dia. Claro que, na minha coluna, também os homens traíam. Mas o que o público exigia era mesmo a infidelidade feminina. Quando saí da Última Hora, e acabei 'A vida como ela é...', o telefone não parava. Homens e mulheres queriam saber se não ia sair mais e por quê. Dir-se-ia que o problema do brasileiro é um só: – ser ou não ser traído"
"O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões"
"Enquanto os cinco caixões não chegam, penso que há entre mim e Paulinho não sei quantas coisas entrelaçadas. Naquele momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. E como me doía não ter dito a ele tudo, não ter feito as confissões extremas. Eu percebia, ali, que nós olhamos tão pouco as pessoas amadas. Quantas palavras calei com o pudor de ser meigo, vergonha de parecer piegas? Agora mesmo eu não chorava como queria"
"Eu não teria a paciência de Samuel. Ninguém a teria. Outro qualquer meteria uma bala ou em si mesmo ou em Carlos Lacerda (...) O chamado escândalo de Última Hora fizera de cada qual um Carlos Lacerda. Samuel não poderia sair por aí chumbando milhares, milhões de Carlos Lacerda. Mas eis o que eu queria dizer: – uma geração não basta para explicar tamanha paciência. Ela é anterior a Samuel, começou a ser elaborada, trabalhada, há seis mil anos. Eu me espantava; outros se espantavam. Samuel, não, em momento nenhum. O que ele via por trás dos deputados, de Lacerda, dos artigos, dos discursos e da cólera popular, era um velho conhecido: – o martírio"
"Nada mais arcaico do que o pudor da véspera"
"Agora, despacha-se o cadáver pelos fundos. É uma espécie de rapto vergonhoso, como se a morte fosse obscena. Naquele tempo, o sujeito era velado, chorado e florido no próprio ambiente residencial. Tudo era familiar e solidário: – os móveis, os jarros, as toalhas e, até, as moscas. De mais a mais, o enterro atravessava toda a cidade. Milhares de pessoas, no caminho, tiravam o chapéu. Ninguém mais cumprimentado do que o defunto, qualquer defunto. Mas havia o chapéu, e repito: – tínhamos o chapéu. Pode parecer pouco, mas é muito. Sei que o nosso tempo não valoriza a morte e a respeita cada vez menos. Por vários motivos e mais este: – falta-nos o instrumento da reverência, que é o chapéu"
"A cara do marido pode influir no adultério. A cara, ou a obesidade, ou as pernas curtas, ou a papada, ou a salivação muito intensa. Lembro-me de uma senhora que também traía o marido. Quando lhe perguntaram por quê, ela alçou a fronte e respondeu, crispada de ressentimento: – 'Porque ele sua nas mãos.' Uma outra era infiel porque descobriu apenas o seguinte: – o marido tinha saliva ácida. Às vezes, eu quero crer que foi uma dessas pequenas causas, um desses motivos insuspeitados, intranscendentes e, mesmo, humorísticos, que a induziu ao adultério"
"Os vizinhos que me viam chegar em casa, com um liquidificador debaixo do braço, olhavam pra mim com escândalo e ira. 'Lá vai o tarado', deviam cochichar entre si. Eu podia abrir o embrulho e argumentar: – 'Estão vendo esse liquidificador? É o meu salário.' No fundo, no fundo, eu achava o seguinte: – aquele liquidificador provava minha pureza, provava minha inocência. O sujeito que recebe, como remuneração profissional, uma panela, uma fruteira, é quase um São Francisco de Assis"
"O homem esquece antes de sofrer. Agora mesmo, tenho diante de mim um recorte de jornal. É a croniqueta do poeta Drummond, sobre o desabamento. Já vasculhei o papel impresso, já o apalpei, já o farejei, já o virei de pernas para o ar. E o papel não diz nada. Mas como? O nosso poeta nacional escreve sobre a tragédia e não consegue dizer nada? Aí está dito tudo: – nada (...) uma catástrofe, para os seus largos movimentos, exige espaço, exige extensão. E a crônica miúda é um gênero próprio para o furto de galinhas. Duzentas mortes pedem a abundância de Jorge de Lima da Invenção de Orfeu. Ora, o poeta teria de dizer, em meia dúzia de linhas, verdades jamais concebidas. Não disse. E há, no meio da crônica, quase no fim, uma alusão, de passagem, a Paulo Rodrigues. Os dois se conheciam; Paulinho tremia de admiração pelo poeta; dedicou-lhe seu último livro ... E Drummond faz-lhe a concessão de uma frase e repito: – Drummond pinga uma frase, e não mais, sobre os cinco corpos cravados na pedra"
"Foi então que descobri esta verdade eterna do palco ou da tela: – a verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido, ululante, melhor (...) o grande ator nada tem de truculento e nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da Ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslumbra e fanatiza a plateia"
Trechos presentes no livro de crônicas "Memórias – A menina sem estrela" (Agir, 2009), de Nelson Rodrigues.
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