Nelson Gonçalves
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad
"Depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembleia, uma unanimidade. Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão (...) As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência"
"Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: – não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima"
"Sempre me pareceu que Johnny Kennedy era, como líder, um equívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha. E Kennedy era um pobre ser, crispado de humanidade, igual a um de nós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós (...) E mais: o líder morre na hora certa, e não antes. Kennedy morreu antes, e repito: – morreu antes da obra. Um Napoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão. Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo (...) o verdadeiro líder há de morrer com rosto. Sim, a morte tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, a medalha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. E tiveram de fechar o caixão de Kennedy para esconder o queixo arrancado"
"Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu a própria superioridade numérica. Começaram a aparecer as multidões jamais concebidas. Eram eles, os idiotas. Os 'melhores' se juntavam em pequenas minorias acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz (...) Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é Prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote. Aprende, sabe, ensina"
"Quanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco"
"Vejam o nosso Nordeste. A quem deve D. Hélder o seu pão de cada dia? Deve-o à fome do Nordeste. E há outros, e outros, e outros que, como o bom Arcebispo, vivem e prosperam graças, ainda e sempre, à fome no Nordeste. Há mais. D. Hélder deve cada frase e cada gesto de sua retórica à bendita miséria nordestina. (Quando lá se instala uma nova fábrica ele tem urticária de ódio impotente)"
"Nada mais feio que a nudez sem amor"
"Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovação formidável. O grande público não gosta dos seus filmes, não entende seus filmes. Mas é outro gênio. Chamam-no de maluco. A figura que tenha essa lenda de insânia fascina o povo. Lembro-me de um conhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer, deslumbrado: – 'Não entendi nada.' Estava gratíssimo ao filme e ao autor. O povo desconfia do que entende, desconfia do que gosta. E Glauber Rocha, ao surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagem do que as cerdas de um javali"
"Quase todos os dias uma estagiária me entrevista. No dia seguinte: – não sai a entrevista. É espantoso, mas exato. Não sai, nem a tiro. Eu opino sobre tudo, desde o Zé da Ilha no barraco, ao Arquiduque da Áustria, em Sarajevo. E a minha opinião não aparece. Digo as coisas mais ousadas, certo de que ficarão para sempre inéditas"
"Não há nada mais parecido com uma grã-fina do que outra grã-fina. Por dentro e por fora, todas se parecem. Quem viu uma, viu as outras"
Trechos presentes no livro de crônicas "A cabra vadia – Novas confissões" (Agir, 2007), de Nelson Rodrigues.
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