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Òṣóṣi — o caçador de alegrias, de Mãe Stella de Oxóssi

Mãe Stella de Oxóssi
Foto: Iraildes Mascarenhas | Arte: Mirdad


"Os africanos não concebiam a existência de uma maldade genuína e nem tão pouco de uma bondade absoluta. Na sua visão, o dualismo é inerente a todo e qualquer ser, sagrado ou profano. Desse modo, não existia a mínima possibilidade de um africano conceber o oríṣa Èṣu da mesma forma que um cristão concebe Satanás. Enquanto este último é a expressão da maldade genuína que se opõe à infinita bondade de Javé – o Deus Supremo na teologia judaico-cristã, Èṣu tanto atua beneficamente, favorecendo àquele que não negligencia com as divindades, quanto atua maleficamente, punindo os negligentes que põem em risco o equilíbrio da harmonia no universo"


"Tudo o que a nossa religião professa advém da natureza. Os nossos dogmas não foram ditados por um Deus distante, eles são aprendidos na interação homem/divindade através da natureza, pois os nossos deuses sempre usaram essa interação como forma de expressão"


"Colonizadores, através da catequese, adulteraram a concepção original acerca dos oríṣa, deturparam os conceitos quanto aos cultos, corromperam o que havia de mais sublime na religião e cultura de toda uma nação. Os oríṣa deixaram de ser divindades e foram relegados à posição de demônios nefastos. À força, outros deuses foram sendo impostos como salvadores de alma, ao tempo em que o africano era condenado, quando não à barbárie, à degradante condição de animais escravos, sem sequer lhe ser dado o direito de possuir alma"


"Graças ao sincretismo com o cristianismo, as degradações dos nossos conceitos mais puros se expandiram, nossos preceitos tornaram-se depreciativos e com isto arraigou-se um preconceito pejorativo capaz de fazer com que, ainda hoje, muitos afro-descendentes neguem a sua ancestralidade e tantos outros conduzam de forma desprezível o legado dos nossos ancestrais. Contudo, o àṣẹ – a pedra fundamental da religião dos oríṣa – resistiu através da convicção religiosa de grande parte desse povo e, persistindo até hoje em nós, seus descendentes, me permite, nesse momento, mostrar com seriedade, dedicação e o devido respeito à autêntica tradição, um pouco da realidade desse nosso universo"


"A morte realmente não é um fim e sim uma travessia para uma nova etapa que se impõe como a única certeza dos que estão vivos e para a qual é preciso se preparar, a cada dia, aprimorando o caráter, conduzindo a vida com dignidade, observando os preceitos sociais e religiosos para honrarmos os compromissos assumidos"


"Tanto os oríṣa do povo de língua yorubá quanto os voduns do povo de língua fon ou jêje, assim como os inkisses do povo de língua bantu são concebidos como seres primordiais, expressões divinas das forças da natureza, um poder imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos através do fenômeno da incorporação. A todos são feitas oferendas e sacrifícios, são endereçados cânticos de louvor; todos possuem saudações ritualísticas específicas e seus mitos apresentam praticamente os mesmos motivos"


"Se considerarmos o fato o caçador ser o dono da terra, o fundador da tribo, o provedor de alimentos, defensor, legislador, médico, feiticeiro e tudo o mais que ele exprime, compreenderemos a associação existente entre o oríṣa Òṣóṣi e a abelha (...) Assim como o caçador, a abelha é o símbolo da interação entre os reinos animal e vegetal, sendo o mel o mais puro produto de natureza orgânica oriundo da interação entre esses dois reinos. A colmeia é, a um só tempo, uma aldeia e uma comunidade secreta"


"A flecha, pela função que exerce, tornou-se um símbolo do intercâmbio entre o céu e a terra, da ultrapassagem de condições normais. O fato de atingir um alvo evoca o alcance de um objetivo, uma realização rápida, quase instantânea, o que a torna um símbolo do pensamento que conduz à luz e ao órgão criador. A flecha deve a segurança da sua trajetória e a força do seu impacto à coragem daquele que a lança e isto quer dizer que a interação entre flecha e arqueiro deve ser plena, pois através dela é ele próprio quem se projeta e se lança sobre a presa. Desse modo, acertar o alvo é a perfeição espiritual, a união ao divino, e supõe a trajetória da flecha através das trevas que são os defeitos e as imperfeições do indivíduo"


"Todos os fundamentos da nossa religião, os nossos dogmas, manifestam-se através do símbolo, pois é a partir deste que os mitos justificam os ritos nos transmitindo a concepção dos nossos ancestrais acerca dos nossos oríṣa"


"Um símbolo detém o poder de indicar, sugerir e estimular. Isto intensifica a afirmativa de que o mito, o rito, o culto, a religião, a arte e os costumes, assim como a consciência e os conceitos referentes à sua compreensão filosófica do mundo, encontram seus fundamentos no símbolo. Daí a máxima de que uma experiência simbólica jamais pode ser criada por nós, ela simplesmente ocorre"



Trechos presentes no livro "Òṣóṣi – o caçador de alegrias" (Fundação Pedro Calmon, 2011), de Mãe Stella de Oxóssi.

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