Pular para o conteúdo principal

Vamos ouvir: Sobre Noites e Dias, de Lucas Santtana

Sobre Noites e Dias (2014) - Lucas Santtana




Não consegue visualizar o player? Ouça aqui

Release disponível no soundcloud do artista:

"
As cordas do quarteto Oslo Strings repetem-se lentamente sobre uma sequência de acordes, como um tear mecânico que programa uma matriz sonora hipnótica. Lucas Santtana canta desde o primeiro segundo, sua voz manhosa e quieta de bom baiano contrapondo-se ao tom épico criado pelas cordas. Canta em inglês, conversa com computadores, tablets e smartphones - “máquinas complexas, seres complexos”. Sobre as cordas surgem outros instrumentos - a linha de baixo de Caetano Malta, beats e efeitos sonoros disparados pelo produtor Bruno Buarque, synths conduzidos por Lucas, ruídos de Zé Nigro, o piano de Zé Godoy e o clarone de Juliana Perdigão vão se envolvendo à textura do quarteto até que a exatos dois minutos após o início da música Lucas pergunta-se sobre as dúvidas destes seres, que nos escravizam através do tempo. “Onde está o tempo humano?”, cobra o compositor sem afobação no momento em que “Human Time” se revela em toda sua grandiosidade.

Estamos entrando em um território de ficção científica, mas não há alienígenas, robôs ou dimensões paralelas. A jornada proposta por Lucas no início de sua conversa é estranhamente familiar, mesmo quando a atriz Fanny Ardant sussurra a letra em francês.. Ao nosso redor o brilho de telas que respiram como plantas cria uma redoma de futurismo tecnológico que parece dar o tom do disco, mas os beats vão se reduzindo a uma batida que nos remete a uma máquina de escrever e a música some de repente, ao contrário da forma que começou.

“Human Time”, no entanto, nos engana. Lucas Santtana não está falando do futuro, não está projetando nada para depois de amanhã. Não é ficção, nem científico. Ele está falando de hoje - e a segunda faixa de seu Sobre Noites e Dias, o “Funk dos Bromânticos” nos leva para o extremo oposto da canção anterior. Cantada em português, é um funk carioca como seu título entrega. Mas que cordas são essas arranjadas pelo próprio Lucas? E esses timbres de guitarra do Junix 11, de onde vêm? E esses tambores digitais tocados por Omulu e Daniel Haaksman? E a linha de baixo de Seco Bass, que soa como um sapo? E a Camila Pitanga fazendo beatbox? Até os “bromânticos” do título - casal que transcende os gêneros no início do século 21, “ela não é gay, ele não é viado e não são mais classificados” - é tão alienígena quanto corriqueiro. Lucas está enfatizando as mudanças de nosso tempo e mostrando que por mais que os conceitos do mundo atual pareçam estranhos, eles são bem mundanos e conhecidos. Descemos da transcendência tecnológica para uma festa de beijos sem culpa.

E o disco segue apontando novos rumos. “Let the Night Get High”, apesar de seu título-refrão em inglês, é cantada em espanhol. Aqui sua banda básica - sua guitarra africana, o baixo firme de Caetano Malta e os efeitos rítmicos de Bruno Buarque - se junta ao sax endiabrado e ao EWI eletrônico de Thiago França, numa jam session que desbrava a noite. O clima é tenso e audaz, marginal e íntimo. “Por que el drama?”, pergunta-nos com um sorriso malandro.

Lucas diz que Sobre Noites e Dias reúne crônicas do dia a dia, mas ele não está apenas contando pequenas histórias - ele vem flagrando as mudanças e transformações deste início de século, os paradoxos e contradições da vida pós-moderna e a forma como superamos estes dramas, assimilando-os à nossa rotina com a maior naturalidade.
É no miolo romântico de Sobre Noites e Dias, sobre paixões e relações, que ele se mostra mais cronista, mas nem por isso menos extravagante. A divertida “Montanha Russa Sentimental” é quase uma comédia romântica ou um seriado brasileiro em forma de canção - Lucas toca quase todos os instrumentos (deixa uma guitarra com Malta e chama o Do Amor Ricardo Dias Gomes para conduzir o baixo marcante) e fala de burilar smartphones, comprimidos ansiolíticos, romance de cinema - vida real, doce ilusão, pressão e solitude numa canção que começa com o soar do sino pavloviano do Whatsapp.

Na linda “Alguém Assopra Ela” - clarinete, oboé, flauta e fagote arranjados e regidos pelo maestro Letieres Leite, da Orquestra Rumpilezz) - ele canta um presente futurista de “disco(rígido) que vai virar memória(flash)”, “camisetas que mudam de cor” e “asfalto que absorve CO2” que não descarta “onda, barco, vento, vela”, ressaltando a introspecção. Oposta à ela vem a apaixonada “Partículas de Amor”, hit composto com Gui Amabis, que transforma o sentimento em um saboroso laboratório de transformações, conduzidas pela conversa do cavaquinho de Lucas com o violão de sete cordas de Luis Felipe de Lima e o baixo do paralama Bi Ribeiro.

“Diário de uma Bicicleta” encerra o miolo apaixonado do disco e o traz de volta para a rua, em um rolê de camelim de Lucas com o rapper De Leve pelas ruas do Rio. Lucas canta um refrão em inglês e deixa o MC de Niterói conduzir sua bicicleta em seu caricterístico flow da zoeira. A marchinha “Mariazinha Morena Clara” chama novamente o sax de Thiago França e o clarone de Juliana Perdigão para juntar-se ao baixo de Marcelo Dworeki, a guitarra de Kiko Dinucci e o cello de Vincent Segal para um desfile jocoso que implora à sua musa para parar no Rio de Janeiro e deixar para lá a os camarões da Holanda de Van Persie ou a beleza da Tailândia.

Vincent, Juliana, Kiko e Thiago seguem acompanhando Lucas na faixa seguinte, a estranha e desconfiada “Blind Date”, cantada em inglês, em que os instrumentos comportam-se de forma mais climática que melódica ou percussiva, sublinhando a tensão de que “o amor pode ser uma armadilha”. O disco termina com uma balada clássica e pensativa: “Velhinho” foi composta com Rica Amabis e o produtor do Instituto que toca piano ao lado da guitarra de Maurício Tagliari e do baixo de Klaus Senna. Juntos parecem desfiar a textura musical à base da repetição, fazendo o movimento contrário das cordas de Oslo no início do disco.

Sobre Noites e Dias se desfaz ao mesmo tempo em que conclui suas elocubrações sobre as transições e contradições de nossa era - homem x mulher, natureza x tecnologia, realidade x ilusão, sentimento x ciência, rua x apartamento, carro x bicicleta. Até a forma como o disco muda de clima entre uma canção e outra é próprio desse nosso cotidiano shuffle, mas aprendemos a conviver com isso. E é isso que Lucas comemora ao saudar a fase de transição da noite para o dia ao final do álbum: “Madrugada, vem caminhar fria e calma, traz o destino”, pedindo, finalmente para, brindar “a alma desse teu velho"

“Agora jovem consigo” não é apenas uma conclusão, mas um convite para todos nós.

Alexandre Matias
www.oesquema.com.br/trabalhosujo
"

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão