Pular para o conteúdo principal

O demônio do meio-dia — Uma anatomia da depressão, de Andrew Solomon — Parte 02

Andrew Solomon
Foto: Divulgação | Arte: Mirdad


"Quando você está se sentindo tão mal que o amor parece quase não fazer sentido, a vaidade e o senso de responsabilidade podem salvar sua vida"


"As vozes do passado voltam como vozes dos mortos para se mostrarem solidários perante a mutabilidade das coisas e a passagem dos anos (...) É à noite que essas pessoas e meus próprios eus passados vêm me visitar, e quando acordo e percebo que não estamos mais no mesmo mundo, sinto aquele estranho desespero (...) Quando vejo amigos da faculdade, tento não conversar muito sobre um tempo em que eu era tão feliz – não necessariamente mais feliz do que sou agora, mas provido de um sentimento especial e específico, e que jamais voltará. Aqueles dias de jovem esplendor me devoram. Esbarro nos prazeres passados o tempo todo, que para mim são muito mais difíceis de processar do que as dores passadas (...) O pior da depressão jaz num momento presente que não consegue escapar do passado que idealiza ou deplora"


"Por uma hora, fiquei deitado na lama, sentindo a água encharcar as roupas; então minha mãe praticamente me carregou de volta para o carro. Aqueles mesmos nervos que haviam sido esfolados até ficarem em carne viva num determinado momento agora pareciam estar envolvidos em chumbo (...) Eu sentia como se minha cabeça estivesse engaiolada em acrílico, como uma daquelas borboletas aprisionadas para sempre na espessa transparência de um peso de papel"


"É maluquice evitar os comportamentos que tornam você doido? Ou é maluquice medicar-se para que você possa sustentar uma vida que o deixa doido? (...) Viver com depressão é como tentar manter o equilíbrio enquanto dança com um bode – é perfeitamente saudável preferir um parceiro com um equilíbrio melhor. E no entanto a vida que levo, cheia de aventura e complexidade, permite uma satisfação tão enorme que eu detestaria desistir dela (...) Seria mais fácil para mim triplicar o número de pílulas que tomo do que cortar meu círculo de amizades pela metade"


"Mulheres que tentam ajustar-se a ideais de feminilidade podem agir como deprimidas por conformismo, ou se tornar deprimidas como consequência da incapacidade de viver dentro de uma definição estupidificante de feminilidade. Mulheres que se queixam de depressão pós-parto podem em algumas instâncias estar expressando apenas seu choque e desapontamento em não sentir um tipo de superemoção que os filmes e a tevê popular têm descrito como a essência da nova maternidade. Como lhes é dito com frequência que o amor maternal é orgânico (que interpretam como significando sem esforço), tornam-se deprimidas pela ambivalência que geralmente acompanha os cuidados com a criança"


"A depressão é um peso muito grande para os amigos. Você lhes faz exigências que para os padrões normais são totalmente irracionais, e geralmente eles não têm a resistência, a flexibilidade, o conhecimento ou a inclinação para lidar com elas (...) Você comunica o que pode e espera que eles consigam assimilar. Lentamente, aprendi a aceitar as pessoas pelo que são (...) Muitos preferem pensar que, se você está sofrendo, é por algum motivo sujeito a uma solução lógica"


"(...) a consciência aqui é consciência de si mesmo, resistindo à aniquilação não apenas através da covardia mas também através de alguma vontade subjacente de existir, manter controle, agir conforme for necessário. Além disso, a mente que se reconhece não pode se desconhecer, e é contrário à vida introspectiva destruir-se a si mesma (...) Mesmo se a escolha é simplesmente entre o ser e o nada – se alguém acredita que não haja absolutamente nada além da morte e que o espírito humano não é mais do que um arranjo químico temporário –, o ser não pode conceber não-ser. Ele pode conceber a ausência de experiência, mas não a ausência de si próprio"


"A depressão é uma doença dos processos do pensamento e das emoções, e se algo muda seus processos de pensamento e emoções na direção correta, isso é como uma recuperação. Francamente, penso que o melhor tratamento para a depressão é a crença, o que em si é bem mais essencial do que aquilo em que se acredita"


"Tomar remédios é dispendioso – não apenas financeiramente, mas também psicologicamente. É humilhante depender deles. É inconveniente ter de monitorá-los e estocar receitas. E é terrível saber que sem essas intervenções perpétuas você não é você mesmo, tal como você se conhece (...) A presença constante da medicação é um lembrete da minha fragilidade e imperfeição; e sou perfeccionista, preferiria ter atributos inviolados, saídos da mão de Deus"


"Entre seu silêncio e nossa autoconsciência intensamente verbalizada jaz uma multidão de modos de expressar a dor psíquica, de conhecimento dessa dor. Contexto, raça, gênero, tradição, nação – tudo conspira para determinar o que deve ser dito e o que deve permanecer calado (...) A depressão – sua urgência, seus sintomas e os modos de sair dela – é determinada por forças muito fora de nossa bioquímica individual, por quem somos, onde nascemos, em que acreditamos e como vivemos"


"Tenha o maior cuidado ao escolher um psiquiatra. É impressionante a quantidade de pessoas que se dispõem a dirigir 20 minutos a mais para ir a um bom tintureiro e que se queixam ao gerente do supermercado quando não tem sua marca favorita de molho de tomate; mas que, no entanto, escolhem o psiquiatra como se este fosse um prestador de serviços genérico. Lembre-se, você está no mínimo pondo sua mente nas mãos desta pessoa"


"O que não está claro é quando a depressão conduz as situações da vida e quando as situações da vida do paciente induzem a depressão. Síndrome e sintoma se confundem e provocam um ao outro: casamentos ruins causam situações ruins que causam depressão, que causam maus relacionamentos, que são casamentos ruins"


"(...) a recusa em tratar as queixas psiquiátricas de pacientes pode transformar uma questão relativamente insignificante como um ombro deslocado numa doença fatal. Se alguém diz que está sofrendo, a equipe da sala de emergência deve agir de acordo. Nos Estados Unidos, os suicídios ocorrem devido ao conservadorismo de médicos como os que encontrei naquela sala de emergência, que lidam com extremos de dor física e psicológica sem tolerância alguma, como se fossem fraqueza de caráter"


"A alta taxa de fumantes entre os deprimidos parece refletir não um atributo particular da nicotina, mas uma tendência geral à autodestruição entre aqueles para quem o futuro só pode ser sombrio"



Trechos presentes no livro de ensaios "O demônio do meio-dia – Uma anatomia da depressão" (Objetiva, 2002), de Andrew Solomon.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seleta: Gipsy Kings

A “ Seleta: Gipsy Kings ” destaca as 90 músicas que mais gosto do grupo cigano, presentes em 14 álbuns (os prediletos são “ Gipsy Kings ”, “ Este Mundo ”, “ Somos Gitanos ” e “ Love & Liberté ”). Ouça no Spotify aqui Ouça no YouTube aqui Os 14 álbuns participantes desta Seleta 01) Un Amor [Gipsy Kings, 1987] 02) Tu Quieres Volver [Gipsy Kings, 1987] 03) Habla Me [Este Mundo, 1991] 04) Como un Silencio [Somos Gitanos, 2001] 05) A Mi Manera (Comme D'Habitude) [Gipsy Kings, 1987] 06) Amor d'Un Dia [Luna de Fuego, 1983] 07) Bem, Bem, Maria [Gipsy Kings, 1987] 08) Baila Me [Este Mundo, 1991] 09) La Dona [Live, 1992] 10) La Quiero [Love & Liberté, 1993] 11) Sin Ella [Este Mundo, 1991] 12) Ciento [Luna de Fuego, 1983] 13) Faena [Gipsy Kings, 1987] 14) Soledad [Roots, 2004] 15) Mi Corazon [Estrellas, 1995] 16) Inspiration [Gipsy Kings, 1987] 17) A Tu Vera [Estrellas, 1995] 18) Djobi Djoba [Gipsy Kings, 1987] 19) Bamboleo [Gipsy Kings, 1987] 20) Volare (Nel

Seleta: Ramones

A “ Seleta: Ramones ” destaca as 154 músicas (algumas dobradas em versões ao vivo) que mais gosto da banda nova-iorquina, presentes em 19 álbuns da sua discografia (os prediletos são “ Ramones ”, “ Loco Live ”, “ Mondo Bizarro ”, “ Road to Ruin ” e “ Rocket to Russia ”). Ouça no Spotify aqui [não tem todas as músicas] Ouça no YouTube aqui Os 19 álbuns participantes desta Seleta 01) The KKK Took My Baby Away [Pleasant Dreams, 1981] 02) Needles and Pins [Road to Ruin, 1978] 03) Poison Heart [Mondo Bizarro, 1992] 04) Pet Sematary [Brain Drain, 1989] 05) Strength to Endure [Mondo Bizarro, 1992] 06) I Wanna be Sedated [Road to Ruin, 1978] 07) It's Gonna Be Alright [Mondo Bizarro, 1992] 08) I Believe in Miracles [Brain Drain, 1989] 09) Out of Time [Acid Eaters, 1993] 10) Questioningly [Road to Ruin, 1978] 11) Blitzkrieg Bop [Ramones, 1976] 12) Rockaway Beach [Rocket to Russia, 1977] 13) Judy is a Punk [Ramones, 1976] 14) Let's Dance [Ramones, 1976] 15) Surfin' Bi

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão