Bruno Liberal (foto daqui)
"Ele nem suspeita que você casou com o pai dele para ter estabilidade financeira e viajar e comprar essas roupas que você tanto adora. (...) A criança, seu filho, nem imagina que você vai tentar de tudo para não interromper sua vida. E não ser como essas mães que você vê passando. (...) Ainda diz que sua mãe tem a obrigação de ficar com o neto para você poder sair com seus amigos e marido e assistir um filminho e fazer terapia de casais e frequentar psicólogo. Que você precisa desestressar no final de semana, que desse jeito ninguém aguenta. E você trabalha a semana toda. (...) Nas redes sociais isso é tão lindo que você parece a mãe mais cuidadosa do mundo, mais atenciosa, mais carinhosa. Mas você nem o escuta. Fica assim no celular o tempo todo rindo e mexendo os dedos nessa tela de vidro e rindo e mandando mensagens e tirando foto o tempo todo. (...) E no aniversário dele você parecia uma mãezona. Gritava o tempo todo 'filhinho, filhinho'. E na hora do parabéns você foi abraçá-lo e ele se esquivou. Correu para a avó. (...) Ele correu para outra pessoa."
"Ele cresceu entre caixões e mortos. Cresceu entre o escuro que habita nosso olhar e o brilho incessante de uma vela de sétimo dia. Não havia como exigir qualquer sentimento do adolescente organizando o enterro dos pais. Uma criança escolhendo caixões. Uma criança escolhendo a roupa dos mortos. (...) Escolheu os melhores caixões. Eram brancos com ornamentações em dourado. Colocou-os lado a lado, ergueu os braços dos dois e cruzou suas mãos. Duas almas deitadas com as mãos estendidas e cruzadas, como namorados passeando de mãos dadas pela rua, apaixonados. Agora, o destino era outro e teriam que descobrir e descobririam juntos, de mãos dadas. (...) O tio reprovou a atitude do garoto, disse que morto tem que ficar com os braços cruzados sobre si mesmo. Que é um símbolo de proteção para entrar no céu. Que assim, cruzados os braços, demônio nenhum poderia se apossar do corpo para fazer maldade. (...) E quem disse que eles vão para o céu, perguntou o garoto. E todo mundo se calou."
"A criança olha bem fundo nele. Descortina sua carapaça de pai. Atravessa a pele grossa e não come. Olha indiferente. O pai grita. A criança não mexe um músculo sequer. Está com a comida dentro da boca, inerte. (...) porra! (...) O homem perde a cabeça. Sua mão cabeluda aperta as bochechas delicadas do menino. E grita. (...) come, porra! (...) A criança fica assustada. Começa a chorar. Abre o berro. São dois mundos opostos gritando em colisão."
"Houve uma correria generalizada para socorrer o velho estendido no banco de trás do carro, inconsciente. Arthur parou na frente da emergência do hospital e observou atônito o pai sendo levado. Estava sem camisa, com um short usado para dormir. Sua barriga farta mostrava-se repleta. Estava descalço. Na recepção muita gente parou para tentar compreender o que se passava com aquele gordo descalço, sem camisa e de shortinho, todo suado com a respiração ofegante. Vermelho (...) Pedro tomou consciência de si e sentiu vergonha. Por um breve instante esqueceu a agonia do pai. (...) O hospital é um demônio que suga todas as alegrias. Não se pode rir em hospital. Não se deve rir, sob pena de punição severa."
"Em pé, na calçada, com o sol a dois metros, não sabe para onde seguir. Ouve a confusão de vozes que gritam. Não sabe o que gritam. Não entende. Sente apenas a dor das vozes. Dos gritos. Dos vários. Da multidão de dentro. (...) Dá para ver os pés castigados. Sujos. Rachados. Com grandes fissuras. Aberturas grossas e complexas que pegam do calcanhar e se estendem até as vozes. Vozes rachadas. Que gritam desesperadas. (...) Mas as lágrimas não caem. Não poderiam. Não dá para ser algo que não existe dentro. Não dá para ser sentimento abortado. As lágrimas foram abortadas um dia, como ele mesmo."
Presentes no livro de contos "O contrário de B." (Confraria do Vento, 2015), de Bruno Liberal, páginas 73-74-75, 64-65, 14-15, 23-24 e 29-30, respectivamente.
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