Cristiano Ramos
Foto: André Nery
Vésperas
Cristiano Ramos
Dentes rasgam o telhado.
Vejo marcas na parede
e raízes sob a cama.
Mariposas se acomodam
como livros nas estantes.
Mas não se permitem ler.
São testamentos em branco
cobrando nossa mudança.
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III
Cristiano Ramos
Era um redemoinho, tenho certeza.
Lagartixas correram, gatos cismaram,
os gritos da vizinha louca estancaram,
bátega prometida subiu à esquerda;
e tão cedo meu pai estava em casa
que me esqueci da prece e das fogueiras.
Mas adivinhei o nome da viração
e escrevi. Do sonho, fiz palavra.
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O avô
Cristiano Ramos
Entre brumas, suas botas amanhecem.
Folhas graves que marcam o compasso,
a máquina do tempo em que refaço
o despertar do engenho. A sua prece
sem palavras, rezada na varanda,
volta como cristais, em girassóis
espelhados, aperta o justo nó
tatuado em meu peito — a sua herança.
Todo meu mundo cabe na sua magra
silhueta, meus versos sequer cobrem
seus cabelos grisalhos ou uma das mãos;
aquela mão direita de onde escorre
o caule ancestral, mapa sem palavras,
de rios trêmulos, flor sem estação.
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IX
Cristiano Ramos
A mãe refaz as malas
e remonta esperanças,
enquanto finjo sono
no outro canto do quarto.
Para quem desejara
o voo sem cordas ou redes,
todo gesto de fé
parece tolo ou vago.
Como uma seta sem arco,
óculos sem lentes,
o vazio de uma janela,
o céu dos indigentes.
A mãe refaz as malas
e um pai espera na sala,
enquanto escrevo versos
nos abismos das paredes.
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Bilhete II
Cristiano Ramos
Eu planto cactos
detrás dos morros
de minha infância.
Quero acordar
antes da noite,
quero morrer
antes da vida.
Esses meus versos
são só poeira
da correria
de mil duendes
sob os meus pés.
Ensaio cantos
de despedida.
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"Eu nasci velho e comprometido
como um prefácio. Sou apenas quilha
à deriva, visível e trincada,
daquele saveiro que se perdeu."
"O que reside além
da janela? No escuro
cômodo que sabemos
ou apenas suspeitamos
— eu, com todos os livros
e mortos de anteontem,
e o senhor do outro lado
da rua, com a coleira
na mão (mas nenhum cão)
e com olhos fechados,
que cumpre (pedra a pedra)
a linha da calçada.
O que cochila ou espia,
lá detrás da moldura,
enquanto nós mantemos
cães e mortos em casa?"
"Nascemos antes. Lá, na escuridão do ventre,
entre monstros que fingiremos não lembrar.
Mergulhados na primeira margem de página,
nós nascemos. Sem luz e sem choro, silentes."
como um prefácio. Sou apenas quilha
à deriva, visível e trincada,
daquele saveiro que se perdeu."
"O que reside além
da janela? No escuro
cômodo que sabemos
ou apenas suspeitamos
— eu, com todos os livros
e mortos de anteontem,
e o senhor do outro lado
da rua, com a coleira
na mão (mas nenhum cão)
e com olhos fechados,
que cumpre (pedra a pedra)
a linha da calçada.
O que cochila ou espia,
lá detrás da moldura,
enquanto nós mantemos
cães e mortos em casa?"
"Nascemos antes. Lá, na escuridão do ventre,
entre monstros que fingiremos não lembrar.
Mergulhados na primeira margem de página,
nós nascemos. Sem luz e sem choro, silentes."
Presentes no livro de poemas "Muito antes da meia-noite" (Confraria do Vento, 2015), de Cristiano Ramos, páginas 39, 59, 73, 65, 38, 08, 14-15 e 20, respectivamente.
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