Tom Correia (foto daqui)
"(...) Para quem quer escrever algo que não seja lixo é fundamental ter a consciência de que tudo, absolutamente tudo, já foi escrito."
"(...) Deitado no sofá, fixei o meu olhar numa pequena aranha prestes a atacar um inseto de asas marrons. A agonia da presa que se debatia nas teias invencíveis me deixou um tanto apreensivo. Pressenti que em breve eu me tornaria uma presa debatendo-se contra o inexorável: o fim. Pensei em agir com um deus, salvando o pequeno inseto no penúltimo instante. Desisti. Sabia que quando chegasse a minha vez, nenhum deus iria interferir no processo. Assistiria a tudo passivamente, talvez até divertindo-se, assim como todos os deuses devem fazer nessas horas."
"Todos os dias, passo seis horas da minha vida fazendo uma tarefa que às vezes considero infame: levo pessoas sem brilho e apáticas para cima e para baixo num edifício de arquitetura sem inspiração, caindo aos pedaços. Sou educado apesar de não ter diploma; sou educado apesar do salário, impronunciável como o mais feio dos palavrões. (...) Não consigo me ver como os outros me enxergam. Sou assim: meio eu, meio os outros, para não ser excluído da vida; sou assim: estranho modo de homem. Desprezo aquilo que mais desejo para tentar enganar o meu próprio destino. (...) Jamais faço planos. Improviso. (...) Ela suportou por pouco tempo o meu lidar com as coisas. E com as mulheres. Sumiu por uns tempos para reaparecer num dia inútil de terça. Grávida de um policial e carregando sacolas de compras. Da roupa velha, nem vestígios. Antes de sair do prédio e da minha vida, me deu um presente: um pacote de pilhas alcalinas."
"(...) Você já passou dos trinta e cinco e já abandonou todos os seus ideais, sonhos, planos, projetos de vida e está cansado de passar vexame sentindo o coração do tamanho de uma pulga quando ouve o barulho do carro da companhia de energia parar na sua porta. (...) Você está cansado, muito cansado mesmo de malbaratar todos os seus aparelhos eletrônicos comprados com sacrifício para pagar as contas do telefone bloqueado e precisa logo de qualquer coisa que possa ser chamada de emprego, de família, de casa. (...) Eles te deixam esperando uma, duas, oito horas numa angústia igual a de um condenado à solitária e quando você já esqueceu as respostas que teria de dar e da cara que tinha de fazer, eles te chamam para entrar na sala e o gerente mal olha para você, te faz um monte de perguntas que o especialista não previu e fica atendendo o celular a todo instante e ainda sai da sala te deixando mais solitário do que um filho único brincando de pega-varetas."
"Aquilo deixou Júnia entediada. Irritada. Atraída. Irritada porque atraída. Um encanador conhecer Brueghel era, além de improvável, inverossímel. Talvez Marcel conhecesse apenas aquele pintor; talvez ficasse apenas decorando nomes e quadros para impressionar seus clientes enquanto desentupia ralos e esgotos (...) Júnia recobrou sua lógica com avidez. O homem era muito observador. Era preciso cautela: "É, sim." Seca. Abrupta. (...) Marcel logo arrependeu-se do comentário. Voltou à sua tarefa. Dali em diante, apenas os barulhos característicos de uma pia sendo consertada num domingo."
"As canelas arrebentadas por uma dividida mal calculada. A coxa direita em sangue vivo por um carrinho mal aplicado. Dois dedos da mão esquerda com forte luxação. Tornozelos túmidos e brilhantes, mais do que doloridos. Intocáveis. Saldos de guerra. Guerra de estreia no quadrangular final. Um César Vaz estropiado e abatido largou o que restava do seu corpo cheio de lama, numa das cadeiras do vestiário, ainda em silêncio. Camisa suada no ombro. Lá de fora ouviam-se os olés da torcida acompanhando os passos do outro time. Limitado, mas brioso. (...) Ele, substituído, sofreu uma marcação inflexível do número cinco. Um tal de Lindóia, que em momento algum foi desleal. Sempre na bola, se antecipando. Não podia reclamar nem mesmo do juiz, figura discreta e precisa. Fato é que jogou mal, muito mal. A noite não havia sido fácil. Tunísia disse que ia embora."
Presentes no livro de contos "Memorial dos medíocres" (Fundação Casa de Jorge Amado, 2002), de Tom Correia, páginas 71, 13-14, 45-49-50, 25-27, 22-23 e 54, respectivamente.
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