Sete passagens de Marielson Carvalho no livro Caymmianos — personagens das canções de Dorival Caymmi
Marielson Carvalho (foto: Facebook do autor)
"'Oração de Mãe Menininha' foi composta num momento especial de inspiração para Dorival Caymmi. Além de coincidir com um período de retorno a Salvador, e todo o envolvimento mais intenso com amigos e com a própria ambiência cultural e religiosa da cidade, Mãe Menininha estava completando cinquenta anos como ialorixá. Segundo Stella Caymmi (2001, p. 442), a letra foi feita em uma hora, à tarde, no dia 8 de setembro de 1972, no Rio de Janeiro. Foi uma das últimas canções a entrar na gravação do LP e, tão logo executada nas rádios, tomou o gosto do público, tornando-se o carro-chefe de um dos melhores discos do compositor. (...) Mãe Menininha tinha admiração e confiança por Dorival Caymmi, tanto que em bilhetes e cartas assinadas por ela ou em recados transmitidos por Jorge Amado, a mãe-de-santo sempre convidava Caymmi e a esposa, Stella, para uma visita ao terreiro nas suas festas ou para conversas mais reservadas. Em entrevista à revista Veja, defendeu e aprovou a homenagem, falando que o sucesso da música só lhe trouxe benefício: 'Melhor assim [...] do que se dissessem que Menininha é malvada. Pois o Candomblé, com seus mistérios, muitas vezes passa por religião do mal, quando acontece o contrário.'"
"Segundo Stella Caymmi (2001, p. 453), a letra foi toda escrita no dia 12 de março de 1975, fato que comprova o quanto o tempo de criação de Caymmi variava entre o ritmo mais e menos intenso, a partir de uma técnica especial de lidar com compromissos profissionais e com sua própria inspiração ou liberdade estética. Ressalte-se que o tempo entre a finalização da letra e a exibição do primeiro capítulo, quase dois meses para gravar, foi adequado para finalizar tudo, pois sem a música a abertura não seria a mesma. Conhecendo Caymmi, Jorge Amado começou a convencê-lo meses antes para aceitar a encomenda, e ele só prometendo, adiando, até que, nesse dia, começando o trabalho de manhã e terminando à tarde, a canção aparece completa, perfeita. Reservou-se num cômodo silencioso de seu apartamento e registrou tudo no gravador para não esquecer. Assim, quando Guto Graça Melo, produtor musical da Rede Globo ligou para lembrá-lo daquela 'musiquinha' prometida, ele estava com a letra e música prontas. E pacientemente respondeu: 'Pode vir buscar'. (...) A Gabriela de Caymmi não se apresenta com traços etnorraciais evidentes de mulata, no entanto, não seria crível delineá-la fora deste perfil de negra-mestiça, mesmo que o compositor tenha concebido uma personagem para além do romance. Quando se ouve 'Modinha de Gabriela', a mulata Gabriela de Jorge Amado aparece através de fios simbólicos que teceram sua imagem. A afinidade entre a literatura de Jorge Amado e a música de Dorival Caymmi é anterior ao romance."
"Caymmi tinha apenas seis meses na Capital Federal e, como chegou já ensaiado da Bahia, começou a mostrar logo suas canções no rádio, principal meio de comunicação da época. E foi no auditório da Rádio Transmissora que produtores musicais do filme viram a estreia de 'O que é que a baiana tem?' e se impressionaram tanto com a letra quanto com a voz do jovem cantor. Lembrado logo depois por esta apresentação, Caymmi foi convidado para uma audição na casa de Carmen Miranda que, aprovando imediatamente o samba, providenciou com a ajuda do compositor a adaptação do figurino que a letra descrevia, assim como os ensaios do gestual que ela incorporaria à sua performance. (...) É impressionante o quanto que a 'baiana' de Caymmi não só transformaria Carmen Miranda em lendária artista hollywoodiana, quanto, a partir da própria cantora, fossem reinventadas outras formas de representação desta 'baiana', tanto na fantasia masculina de Carnaval como na moda feminina, com a estilização de turbantes, maxicolares e saltos-plataforma."
"A canção é dividida em duas partes sensoriais, muito bem destacadas por Tatit (2002) e que mostram o personagem de forma a imaginarmos mesmo essas referências míticas do herói. Na primeira parte, que se resume à primeira estrofe, Caymmi descreve o pescador em ação. A música começa em tom acentuado, acompanhando o movimento tenso e intenso de João Valentão. Os versos iniciais priorizam a rima em 'ão', modulando assim um crescendo sonoro, que destacam mais ainda o ritmo pulsante de sua vida social. São os gestos do 'fazer'. (...) A parte seguinte, que abrange a segunda e terceira estrofes, é um João em contraste com o primeiro, mas ainda assim o mesmo personagem, só que em outro momento de estar no mundo. É quando os vários elementos deste lugar onde vive, como 'o sol', a 'noite', 'a lua', 'o ronco das ondas', a 'lida da vida', 'a morena', a 'areia da praia' invadem seus sentidos e o aquietam, dando lugar ao gesto do 'ser'. É quando ele deixa de lado as armas de sua representação coletiva e se recolhe. Agora tudo à sua volta é suavizado, obrigando-o a não reagir mais com brabeza, ou seja, tudo está em ordem, nada o perturba ou lhe tira do sério. Esse momento é só seu e de deleite daquilo com o que se identifica."
"'Sinhá', por exemplo, é uma forma que foi 'amolecida' de senhora e que se referia à fala como os escravizados tratavam a esposa do senhor ou 'sinhô'. Inclusive, era com esse tratamento que a mãe de Caymmi era conhecida. Na letra, se integra ao próprio nome de Zefa, ou de Inocência. As 'pretas velhas' eram respeitadas por sua comunidade negra por serem idosas e experientes, ou seja, sua trajetória de vida como testemunhas do passado escravista era uma memória cultural viva, como nas tradições africanas são reverenciados os mais velhos. A reversão desse status e do sentido de sinhá branca para a de sinhá negra é a legitimação de suas vozes como protagonista de uma história que não era somente sua, mas de toda uma gente, se não de mesma nação ou etnia africana, ainda assim, de uma mesma realidade social."
"Em 'Vamos falar de Tereza', Caymmi apresenta uma voz masculina que toma inicialmente para si a verdade sobre a personagem, diferentemente da modinha do livro, que, parecendo com o jeito meio Gabriela de ser, em primeira pessoa feminina, fala de si mesma e dá a medida de como se deve lidar com ela. Mas Caymmi se deu conta que essa exclusividade era muito grande para ele, ainda mais se tratando de mulher tão afamada e desejada. Numa reviravolta sutil no meio da letra, ele se livra de problema e joga a responsabilidade para Nosso Senhor, quem de fato sabe mais detalhes de Tereza do que ele. 'Saí pela tangente', revelou irônico o compositor."
"Maurino, Dadá e Zeca são apresentados como resistentes e cientes de sua função social para a colônia. A própria simbologia da rede jogada ao mar potencializa essa imagem de alinhavo das relações pessoais em uma trama coletiva. Nela, independentemente da idade, a colaboração e a determinação para o bem comum são a tônica de uma convivência pacífica. (...) Chico Ferreira e Bento, diferentemente de Maurino, Dadá e Zeca, não voltaram do mar. Em 'A jangada voltou só', outras referências pessoais dos personagens, para além de apenas serem pescadores, dão a medida de como a presença deles na comunidade tinha outra forma de participação. Após as duas primeiras estrofes que narram a saída da jangada e a causa do não-retorno, Caymmi nos apresenta, em tom entre nostálgico e melancólico, o que os dois faziam antes da morte."
Presentes no livro "Caymmianos – personagens das canções de Dorival Caymmi" (Eduneb, 2015), de Marielson Carvalho, páginas 109, 69-70-74, 31, 22, 119, 94-95 e 59, respectivamente.
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