Pular para o conteúdo principal

Cinco poemas e três passagens de Lívia Natália no livro Correntezas e outros estudos marinhos

Lívia Natália (foto: Facebook da poeta)


Sina
Lívia Natália

Todo mês eu sangro.
Diversa de mim,
atravesso Águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede
e, do que sobra,
algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.

Quando sangro,
o animal onde moro troca de pele
por dentro,
expurgando entranhas.

Todo mês eu sangro.
Todo mês eu singro este mar,
em que me banho.


--------


Assombro
Lívia Natália

Num dia como este
de chuva uterina,
meus pés dançam belos
no equívoco dos sapatos novos.

Esta sou eu, em ledo engano:
enfeitando o mal, o errado,
e as ausências do mundo
com meus pés pouco delicados.


--------


Buscâncias
Lívia Natália

Precisa-se de estrelas que brilhem
nos vãos do corpo,
que poluam com seu tom luminoso
a dobra opaca de que toda sou.

Paga-se bem:
em fartas moedas de silêncio,
com dores sem cura,
com sangue duro e vivo de entranhas.

Preciso de alguma luz estranha e calma.
D'algum clarão vivo e verdadeiro.
Algo que negue este estreito
onde moro em solidão.


--------


Anatomia
Lívia Natália

Meu corpo se dobra na curva dos dias,
as ondas passam prenhes de pássaros, peixes e maresias
o mar bebe o mundo com sua língua de onda
e meu útero permanece vazio.

Desconsolada,
engoli naufrágios inteiros
com pescadores e navios
e meus sonhos ganharam pele de peixe.

(Ando com esta barriga murcha,
recolhida no labirinto das entranhas.)

Meu útero bebeu a tinta das letras,
comeu papéis e teclas,
guardou-se debaixo do travesseiro, para o quando,
guardou-se no bolso, numa caderneta fina, para se.

Tudo vão:
Meu útero apenas ganhou guelras
e respira submerso.


--------


Filosofia da composição
Lívia Natália

Um poema me invade e nada me resta
senão o silêncio branco da página
que é o negativo de escrever.

Mas, no alto das brumas novas,
onde as nuvens se fazem brancas
como a página virgem
não há mais consolo
que neste inferno que é a palavra.

Todo corpo de artista é também uma espécie de inferno.
Zumbe o mundo em brasas na cabeça do poeta.

A mim,
me sangra é entre os dedos da sapatilha,
e minhas mãos flanam no alto,
no contra-luz do palco,
desta cena em que sou vista.


--------


"O que rima
quando tudo se finda
é um retrato perdido,
uma porta fechada para o inútil
e as tramas delicadas das cortinas
desvelando,
no paladar das horas,
aquele instante em que o trinco
permanecerá imóvel."


"O mar se deslembra homérico do que passou.
No seu infinito de profundezas
tudo o que do mundo guarda,
é apenas rastro do perdido."


"Enquanto espero, tudo é horizonte
e adivinho seu rosto antigo
na anatomia das pedras."



Presentes no livro de poemas "Correntezas e outros estudos marinhos" (Ogum's Toques Negros, 2015), de Lívia Natália, páginas 23, 61, 65, 67, 59, respectivamente, além dos trechos dos poemas "Desenlace" (p. 88), "Oceano" (p. 35) e "Abandono" (p. 25), presentes na mesma obra.

Comentários

Anônimo disse…
Estou precisando comprar o livro correntezas e outros estudos marinhos, você tem algum exemplar que possa vender? Na editora Ogum's está fora de estoque.

Postagens mais visitadas deste blog

Oito passagens de Conceição Evaristo no livro de contos Olhos d'água

Conceição Evaristo (Foto: Mariana Evaristo) "Tentando se equilibrar sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no espelho. Sabia que ali encontraria a sua igual, bastava o gesto contemplativo de si mesma. E no lugar da sua face, viu a da outra. Do outro lado, como se verdade fosse, o nítido rosto da amiga surgiu para afirmar a força de um amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras e com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Ambas aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria profundeza. E a cada vez que uma mergulhava na outra, o suave encontro de suas fendas-mulheres engravidava as duas de prazer. E o que parecia pouco, muito se tornava. O que finito era, se eternizava. E um leve e fugaz beijo na face, sombra rasurada de uma asa amarela de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença incrustada nos poros da pele e da memória." "Tantos foram os amores na vida de Luamanda, que sempre um chamava mais um. Aconteceu também a paixão

Dez passagens de Clarice Lispector nas cartas dos anos 1950 (parte 1)

Clarice Lispector (foto daqui ) “O outono aqui está muito bonito e o frio já está chegando. Parei uns tempos de trabalhar no livro [‘A maçã no escuro’] mas um dia desses recomeçarei. Tenho a impressão penosa de que me repito em cada livro com a obstinação de quem bate na mesma porta que não quer se abrir. Aliás minha impressão é mais geral ainda: tenho a impressão de que falo muito e que digo sempre as mesmas coisas, com o que eu devo chatear muito os ouvintes que por gentileza e carinho aguentam...” “Alô Fernando [Sabino], estou escrevendo pra você mas também não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada. Mas o engraçado é que não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? (...) E assim é que, por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi, e você também. Até que a dignidade do silêncio venha, o que é frase muito bonitinha e me emociona civicamente.”  “(...) O dinheiro s

Dez passagens de Jorge Amado no romance Mar morto

Jorge Amado “(...) Os homens da beira do cais só têm uma estrada na sua vida: a estrada do mar. Por ela entram, que seu destino é esse. O mar é dono de todos eles. Do mar vem toda a alegria e toda a tristeza porque o mar é mistério que nem os marinheiros mais velhos entendem, que nem entendem aqueles antigos mestres de saveiro que não viajam mais, e, apenas, remendam velas e contam histórias. Quem já decifrou o mistério do mar? Do mar vem a música, vem o amor e vem a morte. E não é sobre o mar que a lua é mais bela? O mar é instável. Como ele é a vida dos homens dos saveiros. Qual deles já teve um fim de vida igual ao dos homens da terra que acarinham netos e reúnem as famílias nos almoços e jantares? Nenhum deles anda com esse passo firme dos homens da terra. Cada qual tem alguma coisa no fundo do mar: um filho, um irmão, um braço, um saveiro que virou, uma vela que o vento da tempestade despedaçou. Mas também qual deles não sabe cantar essas canções de amor nas noites do cais? Qual d