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Cinco passagens de Tom Correia no livro Sob um céu de gris profundo

Tom Correia (foto daqui)


"Um mar de sépia tintura tudo o que vejo na ilha. A cruz diante da praia da infância. Os campeonatos de mergulho para ver quem ia mais longe; minhas mãos alisando as partes submersas de meninas que se transformariam em inaceitáveis mulheres adiposas. Castanhas assadas, o plástico derretido que queimou meu pé, as disputas de pênalti em terrenos baldios chutando garrafas de Q-Boa, as primeiras namoradas imaginárias. Coquinhos de amêndoas, pescaria de cabojas encouraçados que vó tratava reclamando da carapaça nojenta do peixe. (...) Topó, o Perverso, que torcia os pescoços das penosas com prazer sanguinolento; tripas quentes usadas para pescar siris caxangás. A travessia da baía."


"(...) Realmente era melhor ter uma musa inatingível e platônica do que um envolvimento que colocasse em risco a minha fonte de inspiração. Era o preço. De mãos dadas, voltamos pelo mesmo corredor, também o mesmo do meu ginásio. O prédio todo seria a minha antiga escola? Onde estariam então Simone e o seu desmaio ginecológico, Marcelo e a sua cabeça sangrando no pátio bem na hora do hino, o professor Argeu ambidestro e o seu pescoço rubro parecendo um cardeal? Onde se esconderiam agora os meus colegas repetentes e truculentos que me aterrorizavam na fila da merenda com aplicações diárias de retumbantes cascudos? E o professor Babão e a sua inútil cantilena para nos tornar seres menos cruéis, a minha doce Conchinha e suas coxas fantásticas, onde todos foram parar? E Querida com seus mingaus inesquecíveis, o professor Walter e todo seu pedantismo e pompa que todos nós, fracos e medrosos, odiávamos tanto (...)"


"(...) Em meio a um alvoroço no centro comercial, vejo um homem dar um bicuda numa enorme ratazana saída de um bueiro que não aparece na mídia. O chute é certeiro, de trivela. O animal sai rodopiando pelo asfalto seco. Para no meio da pista, sem se mover. Decúbito ventral. Logo a sinaleira daria passagem aos carros que o esmagariam. Já levei muita bicuda na vida. Já rodopiei por vários tipos de terrenos. (...) Eu me aproximo da desfalecida. Um filete de sangue grosso escorre pelo seu ouvido; os olhos plácidos, a boca entreaberta, lhe conferem simpatia. Um carregador de papelão passa próximo. (...) Eu me abaixo e coloco com cuidado o corpo no papelão. (...) Três segundos. Ao tentar carregar a vítima, ela escorrega. Percebo que talvez não dê tempo. Um segundo. Arrebato a desanimada com a mão e corro pra atravessar a pista larga. Chego a tempo de sepultá-la na bela lixeira. Limpo a mão na calça."


"Com o auxílio de uma pequena lupa, escolher aleatoriamente uma formiga e esmagá-la com o dedo indicador; anotar a reação histérica das outras formigas ao se depararem com a morte iminente; perceber com que rapidez se espalharia a notícia; sentir com que grau de solidariedade haveriam de prestar socorro imediato à vítima (...) Essas eram algumas das minhas atribuições vespertinas que estruturavam o meu rigor científico inspirado em Franjinha. Sempre li muitos gibis. Concluí no meu relatório, após anos de dedicação, que os cupins são muito menos solidários do que suas rivais."


"Vista de cima, a construção tem forma de espiral, dando a impressão de se tratar de uma passagem para outra esfera. Não há elevadores entre os três pisos. Apenas rampas e escadas. Nenhuma delas é rolante. Os uniformes mantêm os funcionários afastados uns dos outros. Apenas breves apertos de mãos são permitidos. Conversas paralelas são punidas com suspensões, descontos em folha, demissão e negativação do nome numa lista negra de empregadores. (...) Os que conseguem dar baixa na carteira penam durante anos pelos corredores dos tribunais. A maioria se arrepende. O processo é longo, e a pressão, constante. Alguns, mais radicais, simplesmente desaparecem. (...) Enterros de parentes são considerados injustificáveis para ausência. Em poucos casos, mães e pais mortos são levados em conta, mas, ainda assim, uma comissão é destacada para investigar o velório."



Presentes no livro de contos "Sob um céu de gris profundo" (Casarão do Verbo, 2011), de Tom Correia, páginas 47, 75, 35-36, 93-94 e 40, respectivamente.

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