Lívia Natália (foto: Facebook da poeta)
Sina
Lívia Natália
Todo mês eu sangro.
Diversa de mim,
atravesso Águas brutas,
oceanos que me povoam bravios.
Expulso o que em mim excede
e, do que sobra,
algo se move lívido
pulsando nas sendas de meu ventre.
Quando sangro,
o animal onde moro troca de pele
por dentro,
expurgando entranhas.
Todo mês eu sangro.
Todo mês eu singro este mar,
em que me banho.
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Assombro
Lívia Natália
Num dia como este
de chuva uterina,
meus pés dançam belos
no equívoco dos sapatos novos.
Esta sou eu, em ledo engano:
enfeitando o mal, o errado,
e as ausências do mundo
com meus pés pouco delicados.
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Buscâncias
Lívia Natália
Precisa-se de estrelas que brilhem
nos vãos do corpo,
que poluam com seu tom luminoso
a dobra opaca de que toda sou.
Paga-se bem:
em fartas moedas de silêncio,
com dores sem cura,
com sangue duro e vivo de entranhas.
Preciso de alguma luz estranha e calma.
D'algum clarão vivo e verdadeiro.
Algo que negue este estreito
onde moro em solidão.
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Anatomia
Lívia Natália
Meu corpo se dobra na curva dos dias,
as ondas passam prenhes de pássaros, peixes e maresias
o mar bebe o mundo com sua língua de onda
e meu útero permanece vazio.
Desconsolada,
engoli naufrágios inteiros
com pescadores e navios
e meus sonhos ganharam pele de peixe.
(Ando com esta barriga murcha,
recolhida no labirinto das entranhas.)
Meu útero bebeu a tinta das letras,
comeu papéis e teclas,
guardou-se debaixo do travesseiro, para o quando,
guardou-se no bolso, numa caderneta fina, para se.
Tudo vão:
Meu útero apenas ganhou guelras
e respira submerso.
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Filosofia da composição
Lívia Natália
Um poema me invade e nada me resta
senão o silêncio branco da página
que é o negativo de escrever.
Mas, no alto das brumas novas,
onde as nuvens se fazem brancas
como a página virgem
não há mais consolo
que neste inferno que é a palavra.
Todo corpo de artista é também uma espécie de inferno.
Zumbe o mundo em brasas na cabeça do poeta.
A mim,
me sangra é entre os dedos da sapatilha,
e minhas mãos flanam no alto,
no contra-luz do palco,
desta cena em que sou vista.
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"O que rima
quando tudo se finda
é um retrato perdido,
uma porta fechada para o inútil
e as tramas delicadas das cortinas
desvelando,
no paladar das horas,
aquele instante em que o trinco
permanecerá imóvel."
"O mar se deslembra homérico do que passou.
No seu infinito de profundezas
tudo o que do mundo guarda,
é apenas rastro do perdido."
"Enquanto espero, tudo é horizonte
e adivinho seu rosto antigo
na anatomia das pedras."
Presentes no livro de poemas "Correntezas e outros estudos marinhos" (Ogum's Toques Negros, 2015), de Lívia Natália, páginas 23, 61, 65, 67, 59, respectivamente, além dos trechos dos poemas "Desenlace" (p. 88), "Oceano" (p. 35) e "Abandono" (p. 25), presentes na mesma obra.
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