Cidinha da Silva - Foto daqui
“A sobrinha da visitante ingenuamente pergunta: ‘Mas, tia, a cozinheira não era a tia Anastácia?’. ‘Era’, responde a tia satisfeita. A menina continua, enquanto folheia o livro: ‘Então, porque o livro de receitas é da D. Benta?’. ‘Boa pergunta’, responde e mira a anfitriã, aguardando algum comentário. (...) A dona do livro sorri amarelo, diz que a garota é muito esperta, ameaça tocar suas tranças. A menina se esquiva do gesto, agradece o que parece ser um elogio e explica que gente estranha não pode colocar a mão na cabeça da gente.”
“A repórter, compungida, transmite à mãe a notícia do roubo. Lágrimas grossas escorrem pelos sulcos do rosto marcado pelo sol e pela dureza no trabalho da roça. A câmera focaliza cada detalhe. A mulher ergue o dedo cabeçudo e anuncia: ‘Eu vou falar uma coisa pra senhora: ele roubou foi de safadeza, colegage, luxúria. Não foi fome, não, senhora, porque fome ele passa desde que nasceu!’”
“Os passantes pareciam estar em choque. Nós estávamos. Ninguém foi despachado o suficiente para oferecer ajuda à senhora. O guarda de trânsito da outra esquina, atento, veio andando e ofereceu a mão para a menina. Ela não aceitou, queria colo. Ele ofereceu o colo. Ela rejeitou. O guarda, paciente, explicou à mãe que a menina parecia querer o colo dela e que talvez fosse bom colocar o cachorro no chão e puxá-lo pela corda. (...) A mulher, meio brava, argumentou que o cachorro tinha trauma de buzina e havia gente sem coração que parecia ler a mente do bicho e buzinava só para assustá-lo. Além do mais, ele tinha tomado uma vacina e estava sonolento. Disse ainda que a filha estava ficando muito cheia de vontades. Será que o guarda não poderia ajudá-la carregando as sacolas, ela morava no quarteirão abaixo. O guarda assentiu. A mãe fez um carinho na cabeça da menina e deu-lhe a mão.”
“A humanidade de Tim fica bem evidenciada nas relações de amor com crianças (os dois filhos e outras, de orfanato) e animais, de cães ferozes a bois e vacas de laboratório, instalados no quintal Maia. Em contrapartida, o machismo, a misoginia e homofobia do músico são naturalizados, não há qualquer comentário crítico do biógrafo mesmo diante do espancamento de uma companheira de Tim. Imaginem o estrago. (...) Alguém pode argumentar que não é tarefa do biógrafo julgar ou criticar o biografado. Muito bem, ocorre que em situações de outra natureza, às quais Motta julga excessivas, existem críticas. Por exemplo, o período ‘caretão’ da vida de Tim, vivido na seita Cultura Racional, como fiel leitor e seguidor do livro Universo em Desencanto. Motta não se furta da crítica ao ‘irracionalismo’ da opção de Tim. Fica evidente que a ausência do olhar de gênero é reflexo da falta de uma noção mais consistente de respeito aos direitos da mulher, ou uma visão da mulher como gente, menos como peça de ‘cama, mesa, banho e outras necessidades’.”
“Para os sectários heteronormativos é assim (também para os que nada entendem de saúde mental), o regozijo dos homoafetivos e seus aliados com uma conquista do campo é histeria. Os machos, principalmente, não aguentam ver duas mulheres bonitas, saudáveis, afirmadas, exalando amor uma pela outra, sem deixar qualquer chance de realização às fantasias sexuais rasteiras do macho com uma delas (ou com as duas). O fulgor do casal deve ser algo brochante para esse naipe de sujeitos e eles respondem agredindo as mulheres.”
“O falo imenso é marca em brasa no corpo do africano negro e nos outros negros do mundo. Tem dias em que o querem para dar muito prazer, noutros, suportam-no, porque incomoda e machuca. De toda sorte, ele não faz parte de um homem-gente, é um pedaço cônico de tecidos, artérias e nervos, apontado para o norte (sem bússola), nascido no meio de um boneco preto, ora desejado, ora ridicularizado. Animalizado, sempre.”
“Na vida de gado real e cotidiana desses seres humanos, qualquer vintém acrescido ao valor do transporte de todo dia é intolerável. (...) Quando acontece um aumento, na prática, mulheres e homens, trabalhadores, estudantes, pessoas que circulam pela urbe são constrangidas a pagar mais pela ração diária de maus-tratos. (...) Aceitar passivamente qualquer acréscimo do valor pago por este tipo de transporte público, mesmo abaixo da inflação acumulada, como propugna o prefeito, é apertar o fecho da coleira de rebaixamento da condição humana.”
“O Brasil real, branco e racista, quando se manifesta é tão virulento que produz certa apoplexia. Ele se organiza à revelia da legislação, da constitucionalidade das ações afirmativas, das decisões do STF e rasteja circularmente pelo assoalho da casa-grande. Ele desconsidera tudo e todos em nome dos próprios interesses egoístas, autoritários, desumanos, dos privilégios quase de casta. Este Brasil se regozija em afirmar que se não for do jeito dele e se não for tudo para usufruto dele, não será de mais ninguém. (...) Esse país real tem milhões de defensores, uns mais empedernidos, outros menos. Gente que se locupleta da arbitrariedade vil, pronta a argumentar que tudo deve ser de todos e para todos, leia-se, dos brancos e para os brancos que sempre tiveram tudo. E essa, no entendimento deles, é a ordem natural das coisas. E que os negros continuem nos seus lugares, domesticados. (...) Quando esse Brasil percebe que os negros estão se organizando, conquistando umas coisinhas poucas, trata logo de contra-atacar com os instrumentos bélicos adequados a cada momento (...)”
Presentes no livro de crônicas Sobre-viventes! (Pallas, 2016), de Cidinha da Silva, páginas 31, 22, 30, 44, 37, 95, 82-83 e 51-52, respectivamente.
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