Cidinha da Silva - Foto daqui
“A pergunta reverbera: Somos todos Maju ou não somos? Sim, somos! O problema são eles! Ou seja, nós somos Maju porque vivemos e enfrentamos a discriminação racial cotidiana, em diversos níveis. Da morte simbólica que tentaram impingir à jornalista, ao extermínio físico imposto a Cláudia Ferreira e a 82 jovens negros por dia, no Brasil. (...) Eles (o grosso do pessoal da hashtag) também são Maju, mas por outros motivos. São pessoas que escolhem uma mulher negra única para respeitar, até para endeusar. Isso é muito comum entre discípulos brancos e suas mestras negras: Iyalorixás, professoras, regentes de grupos, companheiras de trabalho, como Maju. Algumas artistas, celebridades, algo válido, enfim, para mulheres negras singulares, consideradas especiais e divas, que encontram um lugar de afeto no coração da legião de fãs ou seguidores que resguardam intactos pressupostos raciais negativos em relação ao restante da população negra. (...) Estes, caso não saibam que um determinada senhora negra que passa por eles é a mãe daquela mulher que admiram, são capazes de tropeçar nela e seguir em frente sem pedir desculpas, como se esbarrassem num objeto inanimado.”
“A despeito da vida de fracassos que impuseram aos meus iguais consegui superar as previsões estatísticas, mantive minha alegria de viver. Não estou deprimido e não vou me matar. Não, mesmo! (...) Sim, é verdade que em vários momentos da vida expus minha tristeza e solidão nas redes sociais, mas elas são consultório terapêutico dos pós-modernos imaturos e solitários, de todo o mundo e de todas as etnias, não só meu. (...) Por isso, se eu aparecer morto peço aos meus que não me deixem ser suicidado.”
“O texto é famigerado pelo próprio título, 'Sexo e as negas' (...) No imaginário da mulher negra, historicamente vilipendiada pelo racismo e suas múltiplas manifestações, o estupro de escravizadas por escravizadores é um fantasma acordado pelo título da série televisiva. A hipersexualização do corpo também pesa nas costas da mulher negra de maneira incompreensível ao coração suburbano cego ao espectro de solidão e abandono que persegue as mulheres negras comuns. (...) O imaginário branco, por sua vez, vincula a hipersexualização do corpo negro ao sexo fugaz, pago, superficial, descomprometido e muitas vezes violento. Os sentimentos de amor, respeito, cuidado, cumplicidade, não são associados ao corpo da mulher negra de todo dia, aquela que não usa o botox da resignação para enrijecer os músculos do riso e gargalhar, mesmo quando destruída pela humilhação e dor impostas pelos inofensivos corações suburbanos.”
“Jovens negros, maiormente heterossexuais, são mortos quando estão na quebrada, nos bares, nas ruas, em casa. São torturados quando vão aos shoppings em grupo e acusados pela esquerda festiva e pelos culturalistas de buscarem o consumo, quando deveriam buscar a cultura. Alôooooo... eles não têm dinheiro para consumir (cultura, inclusive), só o desejo e, como subproduto de sua presença nas casas de torrar dinheiro. O capital os estereotipa, porque alega que meninas e meninos das periferias espantam os clientes ideais dos shopping centers. (...) Aos culturalistas, é bom informar que discurso anticapitalismo funciona melhor com quem estudou em boas escolas; nunca sofreu dor de dente; que ganha carro de presente quando passa no vestibular; que é hippie de butique; que recebe um apartamento quando se casa, como facilitador de início de vida; que brinca de mochileiro na Europa e atravessa todas as fronteiras porque tem dupla nacionalidade. Para quem nada tem, ao contrário, direito ao consumo (ainda que na fantasia ostentatória) é item básico de cidadania. Para o pessoal da classe média é mais fácil ser confortavelmente anticapitalista.”
“Trata-se de uma mulher branca baiana. Branca até o aeroporto de Curitiba. Tem dois filhos com um homem negro, que de vez em quando vejo apanhando as crianças ou deixando-as na portaria. (...) Até aquele dia eu achava que a grosseria dela comigo devia-se à possível identificação racial com o ex-marido negro (parece que se odeiam, mas também, quem é que sabe o que ela passou no casamento com o cabra?), não posso ter certeza, mas achava e acho. É uma identificação com o resto, já que mulheres com o fenótipo dela se casam com esses caras negros porque é o que sobra. Elas prefeririam um branco mais branco que elas, ou pelo menos tão branco quanto, mas sobram os negros na bacia das almas. Negros que buscam uma branca que atue como passaporte para um mundo menos negro; salvo-conduto no mundo branco possível e para-choque no almoço de domingo nos restaurantes de classe média baixa. Aí juntam a fome e a vontade de comer e depois têm indigestão juntos.”
“Harriet Tubman, certamente desconhecida de Holiday, foi uma escravizada nascida em 1820, no estado da Filadélfia, EUA. Cresceu, fugiu do sistema, organizou dezenas de expedições de fuga, libertou cerca de 300 escravizados e os encaminhou a outros estados onde pudessem viver longe do alcance dos escravizadores. Lutou na Guerra de Secessão, liderou uma frente armada contra os escravistas do Sul e libertou mais 700 escravizados. (...) A grande abolicionista morreu aos 93 anos vividos em nome da resistência pela liberdade. Imortalizou a seguinte reflexão que apresento a Holiday: 'Libertei muitos escravos e teria libertado muito mais, se pelo menos eles soubessem que eram escravos.”
“Na real, a proposta do programa feita por vocês é um sossega-leão para o problema racial que o Brasil vive e nega, cuja explicitação acontece quando algum negro fantástico, talentosíssimo, excelente profissional, com o qual convivemos, é assassinado por ser negro, afinal, 'ser preto da Globo' não livra a cara de ninguém. (...) A 'Família Esquenta' por meio de seu sociologuês da diversidade, forma pseudo-intelectualizada de coroar a 'mistura' defendida com princípio do programa 'Esquenta' e apresentada de forma simbólica como solução social harmoniosa para o Brasil, contribui para perpetuar a ideia de miscigenação subordinada. Ocorre que a tal 'mistura' (batismo contemporâneo da miscigenação) até hoje não conseguiu provar sua efetividade para os pretos, tampouco diminuiu os privilégios dos brancos. E essa é a centralidade do tema. É disso que falamos.”
“Ao contrário do que se apregoa em debates tendenciosos e alheios ao funcionamento do racismo para quem é por ele alvejado, não há nada de vitimismo em 'Cabelaços', 'Encrespando', 'Marchas do Orgulho Crespo' ocorridos em várias cidades, existe, sim, protagonismo de uma estética articulada ao pop negro contemporâneo. Estética que, na arte, é a parte exterior da ética do artista. (...) Descendemos de quilombolas e somos as quilombolas responsáveis pela sobrevivência física, econômica, emocional, psíquica e espiritual do povo negro no trajeto da diáspora africana. Somos o presente, o futuro e exigimos o bem-viver, agora, lideradas por nós mesmas, de variadas gerações. Uma sobe e puxa a outra, diz o lema da Marcha das Mulheres Negras. (...) Que todos os renascimentos sejam possíveis. Crespos, dreads e turbantes são as coroas contemporâneas que simbolizam a realeza usurpada de nossas ancestrais, despertada em quem sobreviveu.”
Presentes no livro de crônicas #Parem de nos matar! (Ijumaa, 2016), de Cidinha da Silva, páginas 77-78, 153, 93-94, 23-24, 122-123, 121, 156-157 e 55, respectivamente.
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