Cidinha da Silva - Foto daqui
“As histórias dos pentes dormitavam na parte ornamental e na magia de pentear os cabelos, desembaraçá-los, trançá-los novamente, sentados entre as pernas das trançadeiras, tias Neusa ou Dinda, e vó Berna. O vô mantinha-se sempre atento aos desenhos que iam surgindo e a nós que íamos aprendendo a trançar. São imagens felizes da nossa infância. Juntos, desenrolávamos os enredos. Histórias contadas pelos mais velhos, outras inventadas por nós, as crianças, a partir de brincadeiras e memórias, ancestrais, até, como dizia com seriedade o vô. ‘Ancestralidade, os novos também tinham’, ele explicava para responder ao nosso estranhamento de criança frente àquela palavra do mundo dos velhos.”
“Ele construiu uma série de escudos com uma riqueza impressionante de particularidades, adquirida por um empresário da ilha de Kuanza, em Angola. Neles, esculpiu as guerras de libertação dos países africanos no século XX. Quando o comprador, extasiado, indagou porque ele não esculpia guerras étnicas de períodos pré-coloniais, sagas épicas de reis, princesas e guerreiros – havia tanta história fantástica para contar –, vô Francisco mergulhou no estampido seco do formão em contato com a madeira e, para surpresa do angolano, definiu-se como um homem deste tempo, um observador entristecido do poder que mudava de mãos, mas não mudava de donos.”
“Vô Francisco chegou em uma terra verde-turquesa da cor dos olhos da sereia Janaína, onde a flor amarela da menina o recepcionou, prontinha, com cinco pétalas arredondadas, da cor do sol. Estavam lá também, muito contentes com a visita do vô, a mãe, o pai, o irmão mais jovem, morto por tuberculose, o outro que explodira com a caldeira da fábrica, tantos parentes, amigos e conhecidos do passado. (...) ao voltar do sonho, antes de sorrir, abrir os olhos assustados e segurar firme a mão de vó Berna. Ela apertou a dele com esperança, desejando uma recuperação milagrosa. Porém, foi o vento quem veio assobiando e entrou pelo alto da cabeça do vô, como se conhecesse bem a casa e o caminho. Vô Francisco tremeu todo o corpo, respirou forte e soltou o vento pela boca num assobio de resposta a uma velha conhecida. A essa altura nós todos já nos abraçávamos e chorávamos. Ele semicerrou os olhos, desprendeu-se da mão de vó Berna e relaxou o corpo, já com respingos do choro dela. (...) As árvores de frutas do quintal não mais desenharam a silhueta verde sombreada de preto no amarelo-manga do céu; ao invés disso, formavam um borrão, meio chumbo, meio fumaça.”
“‘Oh vó, e a baleia, ela também pensa na vida dela quando está morrendo?’ ‘Talvez, Ayana, o que você acha?’ ‘Ah vó, durante aquele tempo sem conta, ela deve pensar em todas as atitudes baleísticas da pessoa dela: o susto dado nos humanos, mesmo sem querer; os cardumes devorados por pura gula, aproveitando-se da sopa que os peixes deram em frente à sua bocarra. Essas coisas de baleias.’ ‘Imagino também vó’, completa o João reflexivo, ‘que brincando no oceano, ela apitou como um navio e deu falsas esperanças a um grupo qualquer de náufragos. Isto deve ser uma lembrança doída para qualquer baleia pensativa’.”
“(...) O temperamento dela era mesmo difícil para interagir com as pessoas. (...) Não tinha amigos, não namorava e era pouco amável com a família. A tia Dinda, coitada, insistia para que ela aceitasse ajuda especializada, uma terapia, qualquer coisa vinda de fora, mas nunca conseguiu nada, porque para a Ana Lúcia estava tudo bem. (...) Por fim, o primo tirou o pente-baobá da gaveta da escrivaninha construída pelo vô e entregou a ela. Acho que Ana Lúcia demorará a entender alguma coisa sobre aquela árvore de raízes profundas, copa imensa, sombra para várias pessoas ao mesmo tempo. Mas como dizia o vô Francisco, ‘o tempo perguntou ao tempo qual é o tempo que o tempo tem’. E cada resposta vem a seu tempo, não adianta apressar.”
Presentes no livro infantojuvenil Os nove pentes d’África (Mazza Edições, 2009), de Cidinha da Silva, páginas 08-09, 06, 17 a 19, 24-25 e 48-49, respectivamente, com ilustrações de Iléa Ferraz.
Comentários