“(...) a vida, com seu fluxo irremediável, vai nos engolfando e nos obrigando, forçosamente, a pensar menos no que, de fato, é mais importante para todos nós: as pessoas que amamos e que perdemos, as que estão ao nosso lado, os amigos, os parentes, os prazeres que a arte nos oferece, através de um livro, filme, quadro ou canção etc.
Nada disso pode ser substituído por outra coisa ou outro ser, embora, a cada dia, a estrutura do mundo nos diga o contrário. (...)
A verdade é que o aniversário de qualquer pessoa é tão importante quanto a mais importante das datas históricas. Obviamente que há pessoas desprezíveis e inúteis no mundo, e conheço algumas, mas mesmo estas preenchem, em algum momento de suas vidas, o pensamento afetivo de alguém, e isto constitui uma das justificativas para a celebração da vida.
Esta existência entre enganadores e ladrões não vale que nos esqueçamos disso. Eles também foram crianças, filhos e talvez sejam pais, tios, avós e tenham seus amigos. Compõem, em suma, um grãozinho de poeira do Universo e vão, como eu, desaparecer um dia, tornar-se ou não uma imagem benigna no pensamento de alguém, a exemplo de minha mãe.”
“Hoje, dois de março, se viva, Andréia Gallo completaria 50 anos! Talvez a pessoa mais inteligente que conheci, ela era, no entanto, e sem nenhum paradoxo, generosa e muito discreta. Uma alma boa, delicada, que por 24 anos ininterruptos dividiu-se comigo e, sem nem mesmo uma única palavra ríspida ao longo de todo esse período, me ensinou que a grandeza está em ser pouco ou mesmo nada, em ser contido e moderado, se não anônimo. (...)
Ela amava as estrelas, os planetas, as galáxias. À noite, com frequência, buscava no céu estes seres perdidos para os quais nós, indivíduos comuns, viramos as costas com desdém. Não raro, ao acordar, me dizia que sonhara que estava voando. (...)
Onde estará ela agora? No céu? Talvez. Ou, melhor dizendo, seguramente no céu. Mas não neste céu banal e enganoso em que os religiosos depositam todas as suas fichas. No céu propriamente. Físico. O céu com o qual ela tanto sonhara. O céu de mistérios, luzes, cores, abismos e, por certo, seres melhores do que nós. Num de seus versos preferidos, de autoria de Murilo Mendes, o poeta diz: ‘Quase que só há estrelas’. Mais nada, coisa alguma, pois tudo o mais é efêmero e pouco reverbera. Os astros e as estrelas não. Estão lá! Brilham, voam e a ninguém incomodam. Por isso mesmo se projetam para além de si mesmos e de todos nós.”
“Num de seus contos mais célebres, Jorge Luis Borges afirma, grosso modo, que aquilo que verdadeiramente define uma pátria são os seus artistas, seus ocasos, a natureza, suas montanhas, seus mares, lagos, campos etc. Portanto, quando morre um artista, um pedaço de terra se foi, desapareceu, ainda que, com a sua arte, possamos revivê-lo em sua plenitude criadora, naquele ato que, como nenhum outro, continua, perpetuado por palavras, sons, cores, gestos, imagens, ritmos, tons. É o que sinto, hoje, ao saber que Hélio Pólvora se foi. Desapareceu o homem, calmo, gentil, generoso, sempre com um comentário inteligente e preciso acerca da literatura ou da vida. Quando liguei para uma amiga e lhe dei a triste notícia, foi o que ela me disse: ‘Uma pessoa boa’. Por um instante, ela esqueceu o artista, o escritor e tradutor renomados, e reviveu o homem, o ser social. Isso, claro, é um sintoma. Vivemos um tempo em que a grosseria e o mau gosto dão o tom das relações e, assim, sentimos mais profundamente quando se vai uma pessoa que era antípoda e adversa a tal tendência.”
“Em 4 de setembro de 2009, tive a honra de participar de um evento na Academia de Letras da Bahia, ao lado de Hélio Pólvora. Era a primeira edição de um projeto denominado Encontros Literários, que reuniria, de setembro de 2009 a dezembro de 2011, vários escritores, sempre em duplas, com um representante já consagrado e outro emergente (...) A inauguração foi exatamente comigo e Pólvora, com leitura pública de dois contos de cada um (...) Os contos de Hélio Pólvora escolhidos para a leitura foram A bênção, padrinho e Chuva, ambos de O rei dos surubins (Rio de Janeiro: Imago, 2000), e os meus, Esqueleto e Chuva, ambos do Dizer adeus (São Paulo: K, 2005). Coincidentemente, Hélio e eu escolhemos um conto com o mesmo título... Um caderno impresso com os quatro textos foi distribuído na ocasião aos presentes, e hoje, ao mexer na estante em busca de um livro de W. Somerset Maugham, que também escreveu um conto intitulado Chuva, eu o encontrei. Já não me lembrava de onde o tinha guardado e, das vezes que o procurei, não houve jeito de achá-lo. Era porque tinha de ser hoje, e agora! As palavras são mágicas, e mais ainda as poéticas, literárias. Octavio Paz estava mais do que certo. Quem convive com a literatura não se espanta com o Acaso.”
50 anos!
(02/03/2017)
leia aqui
“Em O sorriso, um breve conto de cinco páginas [de Ray Bradbury], pessoas se aglomeram numa fila imensa e, enquanto esperam, conversam. (...) É o ano de 2061 e, em meio a um caos apocalíptico, causado obviamente por bombas, a maior diversão são os ‘festivais’, nos quais o passado, em especial o artístico, é destruído e incinerado. Sob o efeito de muita bebida e riso contagiante, queimam-se livros e se destroem todo e qualquer objeto artístico e cultural. De valor, claro! ‘Ninguém quer a civilização’, diz um dos personagens. (...) quem está na fila poderá cuspir na Monalisa, de Da Vinci! E logo chega um emissário do Governo, que comunica à turba que as autoridades decretaram que o quadro ali presente seja entregue ao povo, para ser destruído. É o que basta. Se até aquele momento as pessoas hesitavam, sobretudo porque Tom, sendo um dos primeiros da fila, ao contemplar a Monalisa, achara-a linda, agora não há mais remédio. O povaréu avança, e logo ouve-se o som de um rasgão: ‘A multidão estava alucinada, e as mãos pareciam pássaros esfaimados beliscando o quadro’. Tom, a duras penas, consegue um pedaço da tela, e pouco depois sabemos o motivo: em casa, depois de levar uma bronca dos pais e dois pontapés do irmão, ele adormece, com o pedaço da Monalisa na mão a repousar sobre o peito: e naquele pedacinho do que fora por séculos o creme do creme das obras de arte, estava o sorriso, o sorriso lindo, discreto e infalível.
Estamos destruindo o mundo, embora pareça que não. (...) No encontro que tivemos, eu e Mirdad, com Hélio Pólvora, em janeiro, ele nos disse que tinha deixado de aceitar ser jurado de concursos literários, desde que, certa vez, conversando com um dos membros do júri de um concurso renomado sobre e dificuldade que era ler até quinhentos livros num prazo tão curto e escolher ‘o melhor’, o sujeito se voltou sério para ele e disse: ‘Eu não perco tempo, Hélio! Jogo para cima uns dez, e o que cair na minha mão eu leio!’ Excelente conselho! Opa, por um instante pensei ter ouvido a voz de um porta-voz do Governo...”
“Foi um dos mais cultuados filmes dos anos 1960 e 1970 [Um homem, uma mulher, de Claude Lelouch]. Um dos grandes ícones do cinema francês e mundial. Um clássico absoluto, premiadíssimo e imitado à exaustão, um filme que antes de qualquer coisa transforma seu assunto em arte, em modo de se exprimir, método de contar, com novidades atraentes, a mais elementar e antiga história do mundo: o amor de um homem e uma mulher.
(...)
Não é uma história de amor simplesmente. Dor, ausência, lembranças, perdas, silêncios, constrangimentos e até culpa se interpõem entre os dois e dão o tom de beleza e poesia que fazem deste filme um caso único na história do cinema, para o bem e para o mal. Explique-se: foi um dos raros filmes românticos a ganhar dois prêmios capitais, Cannes e Oscar de Filme Estrangeiro, e numa época exigente, em que só arrebatavam estes prêmios filmes de mérito comprovado. Influenciou a publicidade em larga escala, tanto no cinema quanto na tevê, e mesmo a impressa; as propagandas manjadas de cartões de crédito, com casais e seus felizes filhos, praticamente o reproduzem, ano após ano, com variações.
Também foi imitado, plagiado e sofreu, ao longo das décadas, uma crescente conspiração silenciosa com o intuito de depreciá-lo e, por fim, apagá-lo. De certo modo, a postura de Claude Lelouch, sincero ao extremo e cheio de autossuficiência, talvez tenha contribuído para esse destino injusto. Ao receber o Oscar, ele disse, secamente, que sua ida para Hollywood estava fora de cogitação, pois o que ele queria mesmo era fazer cinema de arte. E fez, a despeito de seus detratores.”
“Millôr Fernandes era um autor inquieto e multifacetado. Da poesia ao desenho, dos contos humorísticos às ácidas críticas ao mundo, da dramaturgia, em que experimentou o quanto pôde, às traduções de peças do teatro clássico, sempre se exercitou como um inconformado.
Neste último campo, a tradução, ele obteve um êxito incomparável: fez os textos de Sófocles, Eurípides, Shakespeare, Molière ou Aristófanes soar tão atuais quanto qualquer peça escrita hoje, ou até mais. (...) Na história de Medeia, por exemplo, cujo argumento é tão banal quanto qualquer novela ordinária da Globo, as reflexões mais argutas da peça, verdadeiros aforismos de tão precisas, permanecem na mente do leitor, trabalhando naquela engrenagem que é o ponto final de todo texto exemplar do teatro ocidental: a consciência humana, que deve, a qualquer custo, ser excitada e, se possível, transformada.
(...)
Em pouco mais de noventa páginas, tem-se praticamente um resumo da vida. O individualismo humano, a cobiça, a inveja, o despeito, a ação irremediável do tempo, o fim do amor, os casamentos de convenção, as traições, a igualdade entre homens e mulheres, a incapacidade humana de atingir a felicidade, a ideia de que a vida é uma condenação, a submissão do gênero humano à mão de Deus ou do acaso...
Mas muito desse conhecimento teria se perdido não fosse o tradutor um ótimo leitor e igual escritor, capaz de fazer ressoar em português a magia das palavras e do pensamento gregos.”
“(...) a novelinha Os espiões (...) me entusiasmou. (...) [Luís Fernando] Veríssimo cria uma trama quixotesca que mistura mercado editorial, o editor mal intencionado, a condição sempre precária do escritor brasileiro, uma despretensiosa reflexão sobre o papel da literatura na vida tanto dos autores quanto dos leitores e, de quebra, retoca, com tintas nostálgicas, o retrato das pequenas cidades brasileiras nascidas em volta de uma feira, uma praça ou uma grande empresa, que se estabelece e se torna o motor da economia do lugar.
(...)
Em meio aos percalços que seus espiões enfrentam, o narrador expõe sua verve satírica e faz críticas mordazes a editores, autores e leitores, não poupando ninguém de seu ceticismo em relação ao futuro da literatura e do livro. Numa de suas reflexões mais felizes e ácidas, ele decreta: ‘O professor Fortuna diz que em vez de endeusar escritores deveríamos louvar os milhões que resistem e não escrevem, e cuja grande contribuição à literatura universal são as folhas que deixam em branco’.”
Hélio Pólvora (1928-2015)
(26/03/2015)
leia aqui
“‘A autobiografia de um poeta são seus próprios poemas. O resto é suplementar.
O poeta tem o dever de se apresentar aos leitores com seus sentimentos, atos e pensamentos, de coração aberto.
Para ter o privilégio de exprimir a verdade dos outros, ele deve pagar um preço: entregar-se, impiedosamente, à sua verdade.
Enganar lhe é vedado. Se desdobrar a sua personalidade, de um lado o homem real e, do outro, o homem que se expressa, se tornará estéril. É inevitável.
Quando Rimbaud tornou-se traficante de negros, agindo contra os seus ideais poéticos, deixou de escrever. Foi a solução honesta.
Infelizmente, nem sempre é assim. Alguns se obstinam em escrever mesmo quando sua vida não coincide mais com a sua poesia. Abandonando-os, a poesia se vinga. Mulher rancorosa, ela não perdoa a mistificação, nem mesmo as meias-verdades.
Diante de um espelho, que os homens digam, não quantas vezes mentiram, mas simplesmente quantas vezes preferiram o conforto do silêncio.’
(...)
ESTILO. Nestes sete parágrafos, quase aforismos, de tão claros e lúcidos, o autor confessa, de antemão, que não vai escrever sobre si mesmo, mas sobre o seu tempo e seu país, e é o que faz. A URSS surge nua diante do leitor, com suas contradições políticas e o desastroso programa cultural, que enterrou ou desterrou centenas de intelectuais. Em tempos de pretensiosos manuais orientadores para jovens poetas e escritores, e de jovens poetas e escritores mal saídos das fraldas a se exibir como gênios, o livro de Evtuchenko [Autobiografia precoce] parece Vênus, brilhante e solitário nos céus.”
“‘Quando acaba a guerra? A província de Orléanais foi ocupada pelos celtas, pelos germanos, pelos romanos e seus doze deuses durante cinco séculos, pelos vândalos, pelos alanos, pelos francos, pelos normandos, pelos ingleses, pelos alemães e pelos americanos. No olhar da mulher, nos punhos que os irmãos levantam um contra o outro, na voz do pai que ralha, em cada um dos laços sociais, alguma coisa do inimigo sempre se conserva. Alguma coisa quer segurar. Alguma coisa quer matar. A finalidade de nossos esforços não é sermos felizes, envelhecer ao abrigo do frio, morrer sem dor. A finalidade de nossos esforços é chegarmos vivos até a noite.’
(...)
ESTILO. A guerra repetitiva, a misturar os povos. A vida, renovada a cada guerra. Os costumes que ficam, os sestros que se perpetuam e passam de uma cultura a outra, de um povo a outro, deixando evidente que não há povo ou raça puros, nem cultura ensimesmada, sem influência de outra. O dinamismo da vida é o dinamismo da guerra. Por fim, a questão da busca da felicidade, revista por um narrador que acredita não ser este o propósito, mas sobreviver, ganhar o dia. As primeiras contundentes linhas de um romance breve, já uma obra-prima da literatura francesa [A ocupação americana, de Pascal Quignard].”
“‘Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho.
Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa.’
(...)
ESTILO. Uma aula de ironia [São Bernardo, de Graciliano Ramos]. O narrador, atenuado de sua prepotência autoral, pretende distribuir as funções de criação entre seus amigos e, com isso, enriquecer sua obra e as ‘letras nacionais’, àquela altura empobrecidas, pois destituídas de assunto elevado e erudição, escritas em português ruim, mal postas no papel e sem literariedade, pela qual ficaria responsável, pasmem, um jornalista! Refere ainda, sutilmente, o fato de que, no Brasil, com muita frequência, o autor paga as edições de seus livros. Graciliano Ramos não poupa ninguém, talvez somente o leitor.”
“Adaptações de obras literárias para os quadrinhos geralmente incorrem num grave erro: a didatização. Ou então revelam o pendor do roteirista para a preguiça, evidenciada na desistência da história, durante a transposição de um gênero para o outro: comumente os roteiristas começam com todo vigor, atenuam seu trabalho no decurso e, por fim, falham no arremate. Nos dois casos, o resultado é uma adaptação que, longe de expressar a obra na sua essência, a dilui, não satisfazendo o leitor e, muitas vezes, afastando-o de conhecê-la na forma literária. (...)
Raros são os gibis que, de fato, partindo de uma obra literária, se consagram como a expressão autônoma de uma história consagrada. (...) Vejamos Clara dos Anjos (Companhia das Letras, 2011), de Lelis e Wander Antunes. A trama é fiel ao romance de Lima Barreto, a arte favorece a variação de registros imagéticos, num colorido ora suave ora imerso no percurso agressivo do entrecho, e os personagens são ‘pintados’ conforme seu íntimo, de acordo com a velha máxima de que somos fisicamente o reflexo de como agimos em sociedade. Neste sentido, Cassi Jones, o vilão da história, astuto e galanteador, malandro e predador de mocinhas indefesas, não podia ter outra fisionomia senão a de uma raposa, arrematada por um nariz adunco, de ave de rapina. Clara dos Anjos, por sua vez, a mais inocente vítima de sua ação predatória, é retratada como uma jovem e bela negra, mas sem exageros. Aliás, nada é exagerado nesta adaptação do escritor carioca para os quadrinhos. E era uma história que em tudo favorecia o panfleto, a reparação. Mas ficou o que era, originalmente: um relato duro, tenso, realista e inevitável, quase como uma tragédia grega, muito embora não haja, ao fim, nenhum banho de sangue. Mas não há como não pensar que a mocinha Clara dos Anjos morreu um pouco ou de todo para a continuidade de sua existência, num século XIX de estigmas indeléveis, quando afirma, na última página: ‘Nós não somos nada nesta vida’. Não mesmo.
Uma adaptação à altura da proposta literária de Lima Barreto, que, consciente de quem era e do mundo que vibrava à sua volta, não fazia concessões.”
“Mais ou menos ao fim do primeiro terço do filme, quando se dá a sequência-chave para se compreender sua misteriosa trama, Marion, uma das moças, olhando do alto da montanha para o bosque lá embaixo, diz, como se refletisse consigo mesma:
‘O que aquelas pessoas estão fazendo, lá embaixo? Parecem um monte de formigas. É surpreendente o número de seres humanos sem propósito. Embora seja provável que eles estejam desempenhando uma função, desconhecida até para eles’.
Ao que sua colega Miranda retruca: ‘Tudo começa e termina na hora certa e no lugar certo’.
(...) este filme [Piquenique na montanha misteriosa, de Peter Weir] não teria a força que tem, nem a importância que obteve ao longo dos anos, se não fosse a sua forma, que eleva seu assunto trivial ao nível da Arte: música, fotografia, ponto de vista narrativo, reconstituição de época, a atuação despretensiosa dos atores, especialmente do elenco jovem, a celebração da natureza como um cosmo imponderável e a opção do diretor e do roteirista por não explicar o estranho acontecimento que compreende o seu núcleo fazem deste filme um marco das obras cinematográficas que optam pelo mistério e pela polissemia, em detrimento do panfleto e da suposta verdade do mundo. (...) reconheça que, de fato, é com filmes assim que o cinema se ombreia com suas rivais da grande Arte: a pintura, a música, a literatura.”
“(...) a novela de [D. H.] Lawrence [Apenas uma mulher], como toda a sua obra, é de uma inventividade que desafia qualquer autor de sua época e ainda mais da nossa, marcada pela literatura ligeira, de obras que, virada a última página, já estamos pensando em outra coisa. Em estilo, assunto, forma, linguagem, construção de cenas e perspectiva de enredo, ele seduz a todo instante. Numa das cenas mais bem elaboradas, o narrador põe uma das moças, March, em vigília, devidamente armada e pronta a atirar, à espera de surpreender a raposa, mas é ela que é ‘apanhada’ pelo animal, que a observa detidamente, vira as costas, corre, detém-se, olha para trás e num instante desaparece, ‘macia como o vento’. Não sabemos ainda, mas esta cena é uma metáfora do que vai acontecer mais tarde, com a chegada do rapaz: macio como uma raposa, ele também vai surpreender e abalar March.”
“‘Cannery Row, em Monterey, Califórnia, é um poema, um mau cheiro, um rangido, uma qualidade de luz, uma tonalidade, um hábito, uma nostalgia, um sonho. Cannery Row é o ajuntamento confuso e tumultuado, em estanho, ferro e ferrugem, madeiras lascadas, calçadas rachadas, terrenos baldios cobertos de mato e pilhas de lixo, de fábricas de sardinha de ferro corrugado, tabernas imundas, restaurantes e bordéis, pequenas mercearias sempre atulhadas, laboratórios e albergues ordinários. Os habitantes são, como disse o homem certa ocasião, ‘meretrizes, cafetões, jogadores e filhos da puta’ pelo que se referia a Todo Mundo. Se o homem tivesse olhado por outro ângulo, poderia dizer ‘Santos e anjos, mártires e abençoados’ e estaria significando a mesma coisa.’
(...)
ESTILO. De início, a rua é definida subjetivamente. O narrador, ao relembrá-la, parece evocar não um lugar, mas um sentimento, o que o faz derivar para a poesia. Seguem-se, no entanto, elementos concretos do lugar. Deixamos de sentir e passamos a ver, topograficamente. É mais cinema agora que prosa. Por fim, ao contrapor com sua opinião o julgamento geral, o narrador se posiciona e sacraliza o profano. Leitores, e não só os de [John] Steinbeck, foram conquistados e vão atravessar esta história [A rua das ilusões perdidas] como num sonho benéfico, no qual, em lapsos conscientes, torcemos para não acordar.”
“‘Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi o telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Vou tomar o ônibus às duas horas e chego ainda à tarde. Assim posso velar o corpo e estar de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de licença a meu patrão e, com uma desculpa desta, ele não podia recusar. Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: ‘A culpa não é minha’. Não respondeu. Pensei, então, que não devia ter-lhe dito isto. A verdade é que eu nada tinha por que me desculpar. Cabia a ele dar-me pêsames. Com certeza irá fazê-lo depois de amanhã, quando me vir de luto. Por ora é um pouco como se mamãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso encerrado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial.’
(...)
ESTILO. As frases curtas, límpidas e analíticas, a serviço da experiência do sujeito num mundo que não o compreende, disfarçam uma sensibilidade poética que ao longo de todo o romance [O estrangeiro, de Albert Camus] posicionará o protagonista de um lado e a sociedade que o inclui do outro. Esta exige dele comportamento padronizado e cumprimento de regras e costumes, enquanto ele, por sua vez, pretende viver o momento, num estado de hedonismo, que constitui, talvez, a essência da própria condição humana.”
“‘Apanharam o menino em flagrante, quando fazia algo nojento sob as arquibancadas do estádio do liceu. Por causa disso, foi expulso da escola primária, situada em frente, e mandado para casa. Tinha, naquela época, oito anos. Havia anos que fazia aquilo.
De certa maneira, era uma pena. Tratava-se de um garoto simpático e até mesmo bonito, embora sem nada de extraordinário. Algumas crianças e professores gostavam dele um pouquinho e havia os que não gostavam, também um pouquinho; mas, quando foi expulso, todos se viraram contra ele. Chamava-se Horty (ou melhor, Horton) Bluett. Naturalmente, quando chegasse em casa, iria sofrer.’
(...)
ESTILO. Se por um lado, no primeiro parágrafo, o narrador oculta o que seja o ‘ato nojento’, deixando-o germinar na cabeça do leitor, no segundo descreve, por meias-tintas, a criança que o perpetrou, além de sugerir que a punição ainda vai continuar, e pior. Tal técnica acaba por aguçar a curiosidade de leitor, que, depois destes dois parágrafos [O homem sintético, de Theodore Sturgeon], não deixará de ir adiante, tanto atraído por presenciar a punição quanto esperançoso de que ela não ocorra.”
Mayrant Gallo (foto: Lima Trindade)
Presentes no blog NÃO LEIA!, de Mayrant Gallo, postagens Minha mãe e o universo (29/08/2015), 50 anos! (02/03/2017), Hélio Pólvora (1928-2015) (26/03/2015), Encontro com Pólvora (02/04/2015), Estamos destruindo o mundo (10/04/2015), Vá e veja, 24: Um homem, uma mulher (01/07/2015), Millôr tradutor: Medeia (10/06/2015), Leituras, 51: Os espiões (24/04/2015), Inícios exemplares, 7: Evtuchenko (26/06/2015), Inícios exemplares, 14: P. Quignard (22/09/2015), Inícios exemplares, 3: Graciliano (20/06/2015), Literatura e quadrinhos (05/01/2015), Vá e veja, 25: Picnic at Hanging Rock (13/10/2015), Leituras, 50: Apenas uma mulher (28/03/2015), Inícios exemplares, 6: Steinbeck (24/06/2015), Inícios exemplares, 9: Camus (26/07/2015) e Inícios exemplares, 1: Sturgeon (17/06/2015), respectivamente.
Comentários