“(...) O poema é e será sempre uma linguagem que nasce e não permanece. Uma linguagem que jamais se repete. Uma linguagem que é, ao mesmo tempo, memória do sujeito, do idioma e da espécie. Uma linguagem de momento, única e irrepetível. Posta aqui, não pode ser trasladada para lá, pois não é um corpo; é um fluido, uma estação de passagem, um sopro quase divino, o último suspiro. Uma linguagem que, em última análise, não pode ser reutilizada. Reduzi-la a um simples meio funcional de temas e conteúdos é devolvê-la ao substrato comum da língua, de uso cotidiano, que somente quer comunicar uma mensagem e se fazer entender, e por isso seus usos se perdem na vastidão dos tempos. O poema é o ciframento possível de um estado de espírito, de um instante de iluminação. Se o leitor e o eu do poeta, durante a leitura, encontram-se ou ‘coincidem’ nesse instante, o poema se justificou. Se não, que o leitor respeitavelmente passe a página.”
“Dilema: para a Direita (capitalista), a arte deve vender; para a Esquerda (socialista), a arte deve servir. Paradoxo: servindo, a arte se vende; vendendo, a arte serve-se.”
“Aquilo que o Governo chama ‘cultura’ é o que usualmente chamamos Arte: Literatura, Música, Pintura, Escultura, Arquitetura, Teatro, Fotografia, Dança, Cinema, Quadrinhos. (...) a literatura, como manifestação artística (ou, se preferirem, cultural), é tão antiga quanto o homem. Nasceu nas paredes das cavernas, com as pinturas rupestres, que são, grosso modo, narrativa e poesia, as duas essências básicas da literatura. Posteriormente, os ‘desenhos’ se transformaram em palavras, frases, textos, os gêneros literários como os conhecemos hoje: poesia, conto, romance etc. (...) T. S. Eliot (...) afirma que uma sociedade que não lê literatura tende a decair e desaparecer. Sem dúvida, pois de que outro modo poderemos refinar nosso pensamento, se não através da poesia e das narrativas, que, quanto mais elevadas, mais benéficas ao homem, mais ‘educativas’, mais libertadoras? Garanto que não será através do jornalismo-verdade. E é ainda T. S. Eliot quem diz que não devemos descer a arte ao nível do povo, mas elevar o povo ao nível da arte. (...) Essa é uma proposta ousada, que faz da Arte e da Educação uma coisa só. Sem uma, a outra não existe ou existe parcialmente. Quanto à Cultura, ela sempre existirá, pois meu sapato é cultura, um gesto é cultura, uma lata de lixo é cultura. Mas só a Arte é Arte. Por isso sempre defendi que o ministério deveria ser esse: Ministério da Educação e das Artes. Enquanto não for assim não conseguiremos nos ‘elevar’. Continuaremos a ser essa sociedade que rasteja.”
“Não sei ao certo o que espero de um poema quando o leio. Como não sei o que encontrarei num conto ou num romance, num filme ou numa peça teatral. Se não fosse assim, eu não diferiria em nada de um simples leitor de revistas e jornais ou de um assíduo espectador de programas de tevê. E é porque só me deparo com o ‘esperado quando inesperadamente me deparo com ele’, que sou um obstinado leitor de literatura. Retornar a um texto literário, qualquer que seja o gênero, é refazer o instante que o engendrou dentro de nós, trazer de novo à superfície sensível de nossos sentidos aquela ‘inesperada novidade’. Tornar a ler um poema é reinaugurá-lo, ainda que esta segunda leitura não esteja distante da primeira senão alguns minutos, ou mesmo segundos. E esta reinauguração não é gratuita: promove-a o delicado instante em que nos deparamos com o inesperado, que, no entanto, nos convence, com sua força, de que o esperávamos há séculos e que até ‘o procurávamos’. Três ou quatro poemas do novo livro de Georgio Rios me causaram este efeito singular quando o li. Não vou falar da ‘suposta evolução’ do poeta, nem da felicidade que se instala no leitor, ao descobrir o quanto o poeta é encantatório. Esta é uma tarefa muito velha e que prefiro deixar à crítica oficial de poesia do nosso tempo, se é que ela existe e é necessária, afinal de contas o que é o poema senão um objeto para sentir e tão somente sentir?”
O último suspiro
(05/01/2010)
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“(...) Chris Offutt, com o seu impressionante volume de apenas oito contos Além das montanhas (...) reúne tudo o que se espera de um contista nato: fluência, trama envolvente, movimentação no tempo e no espaço, alternância de narração, descrição e diálogo, uma linguagem ao mesmo tempo funcional e poética, com rasgos filosóficos, representação relevante da vida e do mundo, reflexão e, às vezes, ciframento, desfechos condizentes ou conflitantes com a trama, atmosfera, mistério e ironia. Poucos foram os contistas que li nos dez últimos anos (e dos quais antes jamais ouvira falar) que me deixaram assim tão empolgado. (...) Muitos são os trechos a destacar, como este, mais filosófico: ‘Ocorreu-lhe que o tempo não se move para a frente, como ele sempre pensara. São as pessoas que se movem pelo tempo’. Ou este outro, mais devastador: ‘Na prisão, descobrira que as leis eram feitas para proteger as pessoas que faziam as leis’. De uma linhagem de escritores que não pretendem entreter, mas concentrar o leitor, fazê-lo evoluir do embotamento para a consciência, Offutt assim conclui seu relato: ‘Tilden se perguntou quando encontraria uma mulher, um trabalho de que gostasse, uma cidade onde quisesse ficar. Lá em cima, a Via Láctea fazia uma nevasca de estrelas no céu. Não havia nem uma cerca ou muro à vista’. Exílio existencial, liberdade de ação: destino. Eis a fórmula, da literatura para a vida.”
“Aquele filme que acabamos de ver e já queremos ver de novo, pois, mesmo depois de encerrado, continua a ecoar e a nos desafiar com a sua carga de ambiguidade... Aquele filme que nos transforma sem que o percebamos, pois a suposta transformação compreende apenas um insuspeitável acréscimo à nossa percepção do que seja o indivíduo ou o mundo... Aquele filme cuja intenção é apenas contar uma história com (e pelo) peso de si mesma, sem segundas intenções, notadamente políticas ou sociais... Aquele filme que não se fixa em nenhum tipo específico (o adolescente, a mulher, o negro, o pobre, o nordestino, o homossexual), nem em certas datas da História ou em determinados contextos sociais, e que, no entanto, é o Indivíduo, é a História e o contexto que mais nos interessa, o das Relações Humanas.”
“Para o cinema de arte, a perda de Eric Rohmer (1920-2010) não é pequena. Ele foi o sul e o norte de muitos cineastas, e continuava a produzir adeptos. Foi uma fração de sol num campo gelado. Uma trilha a seguir e um estilo a celebrar. Era um dos últimos diretores franceses oriundos daquela genial geração dos anos 1950, e era também o mais discreto e seguramente um dos mais corajosos. Não fez concessões de nenhuma natureza, não adaptou seu estilo às exigências de momento, nem mudou suas escolhas e predileções em favor da celebridade. Encheu-se de palavras para a veneração de poucos e um respeito mútuo, pois não há este crítico que, diante de seus filmes, não apascente sua fera. Pode até não o admirar, mas não o desdenha. Rohmer seguiu como começou e findou-se como no início, esmiuçando a vida.
(...) Rohmer baseava suas narrativas em três aspectos: o diálogo, a movimentação constante dos personagens e o exame das relações cotidianas mais banais. Nele, contudo, diferentemente dos filmes de massa, o diálogo não é vazio ou funcional, para o esclarecimento da plateia; nem a movimentação um recurso da ação, que mantém o público vidrado; tampouco as relações cotidianas se resumem a seções laboratoriais de tipos, com vistas a promover na sociedade, panfletariamente, convenientes mudanças de comportamento. Em Rohmer, o diálogo é a vida do filme; a movimentação, o que faz a trama avançar no tempo e no espaço; e as relações cotidianas, a matéria que permite o exame minucioso da condição humana. E tudo isso sem nenhuma pretensão, com uma simplicidade quase franciscana.
A experiência de assistir a um filme de Rohmer é alcançar a certeza de que para ser profundo e perene um filme não precisa ser monótono nem intrincado. Rohmer, como Truffaut, conta-nos histórias simples que nos conduzem à iluminação e à compreensão de certos segredos e mistérios, que são tão evidentes quanto o céu sobre nossas cabeças, mas que, por ingenuidade ou ponto de vista obliterado, não os enxergamos. (...) Rohmer se foi, mas ficaram seus filmes, exemplos de beleza estética, de narrativa sem pretensão, de profundidade sem monotonia e de uma simplicidade técnica que só os grandes artistas alcançam.”
“(...) O diretor [Mohsen Makhmalbaf] não sente pudor de apresentar seus mestres e com eles fazer o ‘seu filme’ [Um dia muito especial]: de Godard busca o sentido dos signos que estão à nossa volta e que nos regem, ainda que não admitamos isso; como Fellini, exercita a liberdade de filmar sem roteiro prévio ou padronizado, ao fluxo da criatividade; a exemplo de Antonioni, elege a relação amorosa e a mulher como meios de reflexão sobre a existência; de Saura resgata a dança como arte e jogo de sedução; de Tarkovski captura a poesia das coisas (uma sombrinha, o Outono, árvores floridas, luzes, folhas, ruas, o princípio da neve sobre os telhados); sob a influxo de Kar-Wai, introduz a música como elemento que desperta o espectador e o envolve no encantamento da trama, que, por sua vez é esvaziada ou apenas um pretexto intelectual para que, através de diálogos nada ingênuos, embora sem nenhum panfleto, espontâneos e profundos como nos filmes de Rohmer, reflitamos sobre o que é o amor, por conseguinte a vida e tudo o mais. Um dos pontos altos do filme está na cena em que o protagonista revela que trocou um quadro de Lênin por um do Messias e depois este por um cronômetro. Ora, ele trocou a História pela Religião e depois pela consciência do Tempo, essência única de que somos feitos e da qual não podemos escapar, o motor que nos rege, conduz e esmaga. E a consciência do tempo é a certeza de que se é um indivíduo, uno, e só há um ponto de alcance, a morte. Um filme para ser admirado, por sua beleza visual e estética, e desfrutado, pois compreende uma página da vida, a vida de todos nós.”
Leituras, 8: Noite de matar um homem
(26/12/2010)
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“(...) é um dos maiores filmes de todos os tempos [Rastros de ódio], pura arte: ambíguo, impiedoso, forte, inclassificável, verdadeiro, realista a ponto de até hoje incomodar e dividir plateias. E o seu final o resume: o destino do Homem é uma porta aberta, uma jornada da escuridão para a luz, do embotamento para a consciência, que foi o que aconteceu com o Tio Ethan, cujas convicções se esfumaçaram, ao fim. O grande personagem é aquele que se transforma, mas sem panfleto, naturalmente, de acordo com a experiência sofrida e com a lógica narrativa, sem a pretensão de mudar nem as pessoas (os espectadores), nem o mundo (a História). Já vi umas oito ou dez vezes e verei tantas mais! Classificam-no, erroneamente, como western ou bangue-bangue. Na verdade, é um grande drama humano, localizado num cenário hostil e implacável, o Oeste Selvagem. (...) Assistir a estes filmes sob a ótica reducionista da fórmula ‘tiros, socos e ataques de índios’ ou sob o crivo do multiculturalismo, que pretende idealizar o mundo, consequentemente os personagens, é atestar o quanto se desconhece o que seja Cinema, especialmente o Cinema dos Grandes Diretores.”
“A bem da verdade, não foi um semestre bom. Nem poderia: em pleno verão, época de pouca roupa, sol, praia, música, ócio, brisa...
Quinze alunos. Dois apenas interessados em literatura. O resto, vagando. Havia a aluna que dava muxoxo a cada frase mais espirituosa de Machado de Assis, como se detectasse, no estilo do velho bruxo, ideias em excesso e carência de ação cinematográfica.
Havia também a aluna que balançava a perna, de cara para cima, como se ansiosa, a esperar o noivo, que tardasse em demasia, quem sabe por que motivo... Romântica na pele e nos ossos, não suportou o Realismo e, ao receber o resultado da primeira avaliação, foi chorar no banheiro...
Duas outras alunas, durante a entrega dessa mesma prova, irromperam num ataque de riso, incrédulas não propriamente com seu desempenho, mas com a nota. Outras três não queriam saber mais do que já sabiam e passavam toda a aula debruçadas sobre catálogos de vestuário e perfumaria. Ali estava tudo o que elas queriam possuir e almejavam ser: os vistosos acessórios de uma suposta elegância. Sua participação em aula se resumia a um surdo cochicho entre elas mesmas, como se conspirassem, quase em silêncio, contra o professor.”
“Os grandes escritores se fazem em surdina, sem alarde. Dispensam outdoor e autopromoção. Vão como madeira no rio. Seguem com seu estilo, seus assuntos, sua verdade. E não fazem senão pôr a linguagem a serviço destes aspectos. Falo do gaúcho Sérgio Faraco e de seu excelente volume de contos de fronteira Noite de matar um homem. Raramente lemos na literatura brasileira atual um livro de contos tão consistente. Um livro que transpira vida e estilo. Um livro com trechos tão reveladores e tão bem fixados, em palavras simples, de seu meio, e que, no entanto, reverberam, de modo que muito depois da leitura os contos continuam a ecoar. (...) nos contos de base sexual, como a nos sinalizar que é no sexo que a vida começa e é também ali que ela acaba, que o autor resvala a perfeição. Em ‘Lá no campo’, um rapaz se embola com uma moça na escuridão de um velório, ao passo que dois velhos concluem que isso é a vida. Em ‘Dois guaxos’, um rapaz vai embora de casa não porque anseie partir, mas porque é preciso fugir da beleza da irmã, que acabou de se entregar a um ‘chiru’: ‘Seus olhos se encheram de lágrimas e ele se ajoelhou, aproximou o rosto do ventre da irmã. Um beijo, e o sexo dela tinha um cheiro delicado, profundo’. Em ‘Bugio amarelo’, um sujeito encarregado de proteger a esposa de um amigo acaba cedendo a um apelo terrível, em forma de provocação: ‘Se tu é mesmo amigo dele, tu me come’. O resto é vingança, duelo, lenda em Uruguaiana, Itaqui e Barra do Quaraí. (...) Experiência única, esta, de ler o volume Noite de matar um homem, de Sérgio Faraco, pois são contos que reverberam na mente e nos olhos, como facas afiadas num duelo pela honra e pela vida.”
O contista Chris Offutt
(17/01/2010)
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“Uma das maiores evidências de que um escritor é bom, e sua obra relevante, é a leitura pública. Aquele momento em que um leitor de literatura (que nem sempre é um professor) ou o próprio autor leem a obra para uma plateia específica e atenta. O fascínio estará nos olhos, e o impacto final, em especial se for um conto, no silêncio que se segue à leitura da última linha. A escritora Renata Belmonte passou com louvor por esse teste quando levei seu conto A mesma de tempos atrás para uma oficina de literatura que ministrei há mais ou menos três anos, em Cipó, BA. Quando terminamos de ler, as alunas (só havia mulheres na turma) estavam aferradas às cadeiras, sem ação. O impacto foi tamanho, que deixamos a discussão sobre o conto para o dia seguinte, uma manhã de domingo. E que discussão. Foi um dos pontos altos do curso. Na releitura que fizemos no domingo, a vida ganhou outra cor, outro sentido. E vimos o quanto a literatura, com sua linguagem que nos escapa, seu tecido indomável, é ao mesmo tempo espelho e raiz das pessoas: o que está na superfície e o que se oculta, por timidez, temor ou vergonha de se mostrar, como nesse trecho da autora, em que todos nós, mulheres e homens, nos reconhecemos:
‘Apenas se você me perguntasse, eu responderia. Convivo bem com silêncios, com a falta de explicações. Fui menina criada em cantos, tranças feitas pelas empregadas, órfã de pai, intervalo incômodo na vida da mãe. Por isso, diariamente, sou abandonada e não me importo’.”
“(...) Publicado em 1942, na França, este é o mais célebre romance do escritor franco-argelino e um dos dez melhores romances escritos no Ocidente na primeira metade do século XX (...) O curioso é que, não obstante o tom ‘existencialista’ e sua prosa vazada de poesia, com descrições visuais e sinestésicas, este é um relato que se lê com o mesmo interesse e fervor com que se mergulha num romance policial. Aliás, em certo sentido, O estrangeiro é um romance policial. Camus era um admirador do gênero, e reza a lenda de que ele se inspirou a escrevê-lo depois da leitura de O destino bate à sua porta, de James M. Cain, sem dúvida um clássico que não perde vigor, mesmo depois de mais de 70 anos de sua publicação. Com O estrangeiro não é diferente, basta abrir o livro e se deixar envolver por suas palavras, de sonho e rebeldia: ‘Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem’. Essa dúvida inicial é somente o princípio de uma dúvida maior, que vai fazer do protagonista um joguete do destino.”
“O livro Fim de caso, de Graham Greene, distende ao máximo a ideia de que o romance é um gênero informe. Neste agrupador de gêneros e formas, tudo é possível, e suas páginas comportam todas as linguagens, além de permitir o máximo de variação estrutural, externa e internamente, e aceitar todo tipo de experiência estética.
Fiel a essa definição, o autor desenvolve uma trama que principia com uma ressalva do narrador à forma como as histórias se iniciam: as escolhas feitas, o mundo em que os personagens vão transitar, as circunstâncias históricas, a atmosfera. Continua como se fosse uma narrativa noire, numa imersão de mistério e enigma; ganha um inesperado sopro com um episódio de guerra, no qual um juramento religioso é acionado e que, doravante, vai mudar a existência dos personagens, conduzindo uma mulher à morte prematura, pelo descaso consigo mesma e pela ausência forçada de seu amante, e dois homens a uma união de amizade cujo núcleo é aquela mulher, amada por ambos. Depois a trama se torna policialesca, com o aparecimento de um detetive particular nada ortodoxo, e por fim adquire significado religioso, com o requinte de deixar em aberto a possibilidade de ter ocorrido um milagre.
E costurando tudo isso o estilo altamente sedutor de Graham Greene, capaz de nos submergir em análises profundas sobre a vida e o mundo, sem que isso implique uma linguagem enfadonha ou panfletária. Ou seja: um romance completo. Não é à toa que Faulkner, que não era dado a elogiar autores contemporâneos, declarou seu entusiasmo e apreço por este livro. Um clássico moderno (...) que nos arrebata e derruba, deixando-nos desde o início com a sensação de que estamos diante de uma joia rara. E estamos.”
Eric Rohmer
(13/01/2010)
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“Um escritor só é representativo pelo que ele escreve, pela qualidade estética de sua obra, sua capacidade de conferir elevação ao mais baixo dos assuntos. Kafka, quando transforma um homem num inseto a enojar sua família; Camus, quando transforma alguém que não é estrangeiro num sujeito psicologicamente estrangeiro e permite que a sociedade o julgue como tal e o condene; João Antônio quando transforma a visita de um rapaz a um antigo amigo numa compreensão mais profunda da existência, do que somos. Um escritor jamais é representativo por estar mais ou menos visível, transitando pela mídia, viajando de um canto a outro do mundo ou fazendo-se de lobby pelos subterrâneos da Academia. Isso não é literatura; é política literária. Mas se tal escritor cumpre esse papel, mais político, e ainda reúne aquela primeira qualidade, ele também é representativo, ou até mais, se as suas ações aliterárias não se restringem a si mesmo; se elas são como trilhas de orientação para os que o admiram ou o seguem.”
“Os críticos de literatura no Brasil ou são jornalistas ou simples leitores, que ficam no nível mais rasteiro das impressões de leitura. Em geral julgam o texto ‘pelo que ele não é’, em lugar de avaliar de fato o seu propósito e as reflexões que desperta. Mas é assim mesmo: isso aqui é o Brasil, literatura é mais uma leitura, como qualquer outra, e, para muitos, não tem utilidade alguma. Nunca me enganei que fosse diferente, a prova é a quantidade de autores importantes, brasileiros, desterrados do cânone, que, entra ano, sai ano, continua o mesmo: exíguo e restrito a uma ‘forma de literatura’ e ignorante quanto a gêneros importantes, como a ficção científica e o policial. Noutros países, há livros destes gêneros que são verdadeiras obras-primas da literatura, e não apenas no seu meio, como é o caso de Solaris, de Stanislaw Lem, e O longo adeus, de Raymond Chandler. Aqui, estes livros não teriam sido escritos ou, se escritos, seriam ignorados ou estigmatizados.”
“O escritor Carlos Barbosa, autor de A dama do velho Chico (Bom Texto, 2002), postou aqui no blogue um comentário em que confessa ter sentido falta da novela As catilinárias, da belga Amélie Nonthomb (um relato que ambos apreciamos) no texto Novelas imortais.
Ele tem razão, foi uma falta grave, especialmente se levarmos em conta dois aspectos: 1) o fato de que a novela não goza em nosso tempo de muita popularidade, suplantada que é pelo conto, num extremo, e pelo romance, no outro, e só por isso a autora belga merecia ser citada com louvor; e 2) que, sendo esta obra tão recente, entrevemos uma discreta reação de sobrevivência para este gênero, que se recusa a ser conto e não ambiciona se rivalizar com o romance. Admito, portanto, a minha falha, e junto a ela arrolarei outras, não menos graves, e ciente de que, ao transcrevê-las aqui, estarei cometendo outras.
Nos dias que se seguiram ao comentário do Carlos, e conforme fui olhando para as prateleiras das estantes e para dentro de minha cabeça, inúmeras novelas importantes me ‘acorreram’, como se reclamassem, por elas mesmas, a sua presença e o seu prestígio (...) Quanto às que ficaram ausentes ou esquecidas, esclareço que não é porque não sejam importantes. Simplesmente não foram citadas, porque não podemos totalizar coisa alguma nesta vida, assim como não é possível alcançar o azul do céu.”
“Poema em quadrinhos é maravilhoso! É literatura e é HQ, é pintura e é cinema, os quatro gêneros amalgamados de uma forma tão coesa e criativa, que só podemos acreditar que alguns artistas são, na Terra, a parte humana de Deus. Em 1969, quando o publicou, [Dino] Buzzati estava sozinho neste norte tão comum hoje em dia entre nós, sem saber que com ele inaugurava um artefato novo, responsável atualmente pela elevação dos quadrinhos ao patamar de obra de arte. Dizia ele, como se precisasse se desculpar da falta cometida junto aos seus críticos e leitores: ‘Acontece na vida de fazermos coisas de que gostamos sem restrições, coisas que parecem vir de nossas entranhas. Poema em quadrinhos é, para mim, uma destas, como O deserto dos tártaros, como Um amor’.”
Mayrant Gallo (foto: Lima Trindade)
Presentes no blog NÃO LEIA!, de Mayrant Gallo, postagens O último suspiro (05/01/2010), A cruz e a espada (06/01/2010), Gradativa exclusão da literatura (01/05/2010), Leituras 9: Modus operandi (28/12/2010), O contista Chris Offutt (17/01/2010), Contando nos dedos os filmes brasileiros (02/04/2010), Eric Rohmer (13/01/2010), Vá e veja, 6 (28/03/2010), Vá e veja, 9: Rastros de ódio (06/09/2010), Crônica, 1 (07/02/2010), Leituras, 8: Noite de matar um homem (26/12/2010), Renata Belmonte (13/03/2010), Leitura de bolso, 1: O estrangeiro (15/11/2010), Fim de caso (17/02/2010), O farol (11/01/2010), Notas de literatura, 1 (12/10/2010), Novelas imortais, 2 (21/02/2010) e Leituras, 7: Poema em quadrinhos (24/12/2010), respectivamente.
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