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Vinte e duas passagens de Mayrant Gallo no blog NÃO LEIA! em 2013



“Para uma sociedade como a nossa, que despreza a leitura e a educação, parece que o escritor não serve para nada... No entanto, sempre há leitores, e não apenas os leitores-escritores. O ato de ler está tão arraigado ao ser humano, depois de tantos séculos de prática, que ainda vai demorar muito a desaparecer, se desaparecer. Se todos os livros fossem incinerados, eu proporia que os escritores escrevessem, às escondidas, e trocassem entre si suas obras. E sempre haveria a memória, e esta é uma das funções da poesia: um texto que se memoriza mais facilmente e pode ser partilhado sem mediação física. Aquele mundo que supostamente teria acabado com os livros ia ter, também, de incinerar os autores. E o mundo ficaria mais sombrio, pois a Literatura é iluminação constante.”


“Semana passada, de passagem pela Estação da Lapa, principal terminal rodoviário urbano de Salvador, entrei num sebo e (...) encontrei um exemplar de Armado cavaleiro, o audaz motoqueiro (1980), de Herberto Sales. O estado físico era ruim: lombada ferida, capa colada meio torta, miolo dividido em dois e com duas páginas ‘mordidas’ pela impaciência do leitor em separá-las sem o uso adequado de uma lâmina. A mancha, no entanto, estava preservada e, como o papel é de ótima qualidade, quase não havia pontos de ferrugem nas margens. Ao fim, depois de regatear com o vendedor, o livro ficou por quatro reais, que paguei com duas notas de dois. Em casa, dias mais tarde, restaurei todo o exemplar. Retirei a capa, recuperei a lombada, colei o miolo, recoloquei a capa e a protegi com uma sobrecapa. Fiz tudo isso pelo prazer de fazer reviver o livro, como um médico que cura um doente e, depois, ao vê-lo são, de volta à sua vida normal, sente-se satisfeito. E também porque estava lá, rabiscado na falsa folha de rosto, o seguinte: ‘Para Clélia e Evaldo, homenagem de afetuosa estima e admiração de Herberto, Salvador, 4-4-81’. Um dia, um momento, uma pessoa, ou talvez três, irrecuperáveis, perdidos para sempre.”


“(...) Nas duas peças [Calígula (1945) e O equívoco (1944)], de caráter reflexivo, [Albert] Camus emprega a ação dramática com o propósito de expor o seu pensamento, em especial a ideia de que a existência humana é absurda em si, uma vez que existe a morte, destino incontornável. Incapaz de driblá-la, o homem fica a meio caminho entre uma liberdade relativa e a felicidade possível, jamais alcançada: ‘Os homens morrem e não são felizes’. Este é um de seus aforismos mais célebres e que, pronunciado por Calígula, adquire um sentido dúbio: de lamento e de sarcasmo. E é igualmente pelos lábios de Calígula que se chega a uma afirmação ainda mais cáustica, muito embora utópica, para não dizer verdadeira: ‘Este mundo não tem importância, e quem reconhece isto conquista a sua liberdade’. Liberdade, desprezo e, talvez, felicidade têm uma só face.”


“(...) se o personagem de Simenon [Os escrúpulos de Maigret (1958)] procurava registrar a vida em seu gravador portátil, o poeta Alexandre Coutinho o fazia através de seus poemas... Há ainda a certeza de que ambos não se achavam confortáveis no mundo, como boa parte dos artistas, excetuando-se aqueles que se dedicam ao entretenimento. Eram, por assim dizer, seres inadaptados e talvez por isso fizeram da palavra o seu universo. É o que compete aos poetas: uma vez que a existência não basta, lançam mão das palavras, com o propósito de torná-la mais compreensível e suportável, se não melhor, e não apenas para si mesmos, pois também os leitores e ouvintes acabam por usufruir de suas epopeias verbais e se inquietam. O personagem de Simenon morreu em meio a uma coleta de sonoros ‘documentos humanos’, ao passo que Alexandre Coutinho suprimiu a própria vida por ser ela mesma um documento humano, incorrigível e inadiável. Não foi o melhor poema que escreveu, mas foi o último e o mais grave, aquele pelo qual jamais será esquecido. Como uma inesperada lanterna a iluminar a trilha numa noite de tempestade, ele nos fez entender que, por mais exatas que sejam, as palavras falham, não dizem o suficiente ou tão somente esbarram na indiferença do mundo, e que, diante desta verdade, só resta ao poeta calar-se. Que a terra lhe seja leve!”


Modelo de generosidade
(03/01/2013)
leia aqui

“(...) Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas o absurdo permanece, pois o homem, em essência e corpo, continua ambíguo, vário, estranho, estrangeiro, surpreendente e contraditório. Pelos títulos de suas peças, já intuímos o universo de sua dramaturgia: A história dos ursos pandas, contada por um saxofonista que tem uma namorada em Frankfurt. Ou: História do comunismo contada aos doentes mentais. Ou ainda: A palavra progresso na boca de minha mãe soava terrivelmente falsa. (...) Numa das histórias centrais da proposta de Visniec, Cioran entra numa sala de aula da Sorbonne, onde procura a cantina dos estudantes para fazer uma simples refeição, e ali está O Professor de Filosofia Cego, ministrando exatamente um curso sobre Cioran. Em dado momento do diálogo que os dois travam, o Professor de Filosofia Cego diz: ‘Se você quer acompanhar o curso sobre Cioran, precisa se inscrever primeiro na secretaria! Não aceito qualquer pessoa no meu curso...’ A fala que resume o universo de Matéi Visniec, bem como o pessimismo de Cioran, e que não por acaso constitui uma pergunta, é esta: ‘Por quê, por que quando a gente cava um buraco para enterrar um coelhinho morto, a gente topa com outro coelho enterrado lá pouco tempo atrás?’ Matéi Visniec. Um dramaturgo de primeira. E um esteta das verdades absurdas.”


“(...) Com A fascinação pelo pior (Rio de Janeiro: Rocco, 2008), obra elegantemente bem escrita (uma característica da ficção francesa contemporânea), [Florian] Zeller propõe que a literatura, e em especial o romance, é o lugar da liberdade, a única modalidade de texto em que tudo pode ser dito e que é um erro da parte dos leitores supor que a ficção constitui um espelho do pensamento e da personalidade do autor. Bem, às vezes isso pode ocorrer: há os que insistem, depois de tudo, em repetir a si mesmo, e ainda mais hoje, quando se cobra do autor engajamento com as causas mais bizarras e uma postura politicamente correta que beira o delírio. Mas, em geral, o que o autor representa num romance é uma verdade possível, não a Verdade, e sua permanência e efeito reais terminam quando fechamos a obra. No rastro de Milan Kundera, Zeller afirma que o romance é uma arte ‘incompatível com qualquer espírito religioso, pois ela é, essencialmente, uma profanação. O romance torna intangível tudo aquilo que ele mesmo toca e que remete, assim, à ambiguidade moral do homem e à relativização fundamental das coisas. Aqueles que acreditam ser os donos da verdade e que não admitem contestações sentem-se, portanto, diretamente ameaçados pela arte do romance. Por isso têm um interesse cruel na sua destruição.’.”


“(...) A trama do conto [A estrada de Ray Bradbury] é simples, e é isso que deixa o leitor perplexo: Hernando mora com a esposa numa casa à beira de uma estrada de trânsito intenso. Um dia ele percebe que não passa nenhum carro. Por horas e horas. Acha estranho e comenta com a mulher. Então, de súbito, surge um automóvel com um homem e duas ou três moças. Eles estão apavorados e querem um pouco de água para pôr no radiador. Hernando traz a água, e todos ficam agradecidos. As mulheres não param de chorar, no entanto. E o motorista diz para Hernando que explodiu a guerra atômica, que tudo vai se acabar, é o fim do mundo. E vai embora. Em casa, a mulher pergunta o que aconteceu. Hernando responde; ‘Nada’. E depois pergunta a sim mesmo: ‘O que eles quiseram dizer com o fim do mundo?’ Alienação, alheamento, desdém, ignorância, atribuam a este comportamento o que quiserem, mas Hernando é quem menos vai sofrer.”


“(...) fui à estante pegá-lo [Carmen ou o desencontro dos sexos nos anos 80, do alemão Wolf Wondratschek]. Para o meu espanto, não o achei na seção de literatura de língua alemã. Ou eu o pegara e pusera em outro nicho ou (o que eu temia fosse a mais pura verdade) levara-o ao sebo para, com outros, trocá-lo por algum livro de que necessitara em algum momento. Já fiz muito isso, especialmente na época da graduação e do mestrado. Decidi ir direto ao sebo e, sem nenhuma dificuldade, lá o achei, o mesmo exemplar. Realmente, eu o envolvera numa troca. Mas havia ainda uma outra surpresa, redentora: na terceira capa, eu havia rabiscado a lápis um poema, do qual já não me lembrava e nem tinha cópia. Um poema perdido recuperado por um ato de releitura. Depois deste episódio, não há como não acreditar que, de fato, reler um livro constitui sempre uma nova descoberta: do texto, do autor e de outras coisas.”


Gallo no Balaio: entrevista
(26/05/2013)
leia aqui

“(...) Josélia Aguiar foi a primeira pessoa que me incentivou a publicar um texto, ao levar meu conto Bicicletas para o extinto caderno A Tarde Cultural, em 1995 ou 1996. E, para a minha surpresa, num dos eventos literários a que compareci em 2012, um senhor se aproximou de mim, me cumprimentou e disse que lera meu conto Bicicletas e ainda o mantinha guardado. Este foi um dos maiores elogios que já recebi.”


“Desde que começou, há mais ou menos três semanas, a divulgação de lançamento de Cidade singular (Kalango, 2013) e Os encantos do sol (Escrituras, 2013), recebi quase vinte comentários ofensivos, ou através do Não leia! ou diretamente na minha caixa de e-mail. As mensagens são anônimas ou assinadas com nomes fictícios ou outros que lembram pessoas de minhas relações. Em geral, expressam ódio por minha pessoa ou por meus livros (...) Ora, se sou péssimo escritor e falo só bobagens, não entendo por que essas pessoas se ocupam tanto comigo e tanto se esforçam por me diminuir e execrar. A um escritor sem talento e que não diz nada de relevante deve-se oferecer silêncio. Não acredito que estas pessoas se deem ao trabalho de ler o que eu escrevo. Simplesmente opinam no vazio, para me atormentar, e num tom que faz parecer que são notáveis conhecedores de literatura. Mas não conseguem. A cada vez que recebo uma mensagem assim, mesmo que não a leia, pois sei o que dizem, sinto-me mais forte, recompensado, motivado a escrever ainda mais e a seguir em frente, porque, ao mesmo tempo que estou ‘cultivando meu terreno’, sei que estou fustigando o suposto inimigo, que é Legião. De resto, este é o lado nefasto da internet. No passado, se alguém quisesse ofender um escritor, ou o fazia pessoal e publicamente, na tarde de autógrafos de um de seus livros; ou lhe mandava uma carta anônima, pela qual, pouco ou muito, teria que pagar um valor qualquer, referente à postagem; ou tentava publicar uma crítica nos jornais, que só raramente aceitavam textos anônimos, sob pena de sofrerem um processo. Com a internet, tudo é livre, de graça, e as pessoas dizem o que querem, porque se escondem por trás de uma máscara virtual de patrulheiros da beleza, da justiça e da perfeição. Continuem me enviando esses comentários, ao contrário do que vocês pensam, eles me fazem muito bem. E, sem que o saibam, vocês estão trabalhando para mim.”


“(...) O mais certo, porém, é que, pela tradição das últimas décadas, a ponte [ligando Salvador a Itaparica] comece a ser construída e, depois de meses ou anos, pare, pela metade, como um braço amputado, suspenso na imensidão do mar. Um trampolim como aqueles sobre os quais, nos desenhos animados, os piratas obrigam que os marujos rebelados andem, para a morte... Um símbolo da insensatez dos políticos e de sua opção antes pela publicidade do que pelo bem estar da população que representam.”


          “(...) como seria possível que um poeta, por menor que fosse, tivesse cometido tamanho disparate: escrito um poema exaltando uma atriz que ele mal conhecia, tanto que lhe atribui uma foto que não é dela. A resposta é simples: o mau hábito de se querer ser o que não se é, que, mesclado às facilidades da internet (a fonte de pesquisa do autor foi o famigerado Wikipédia), eleva o sujeito a uma altura que lhe é indevida.
          No entanto, muito mais que isso, nosso poeta carece de senso crítico, o que, diga-se de passagem, só se obtém com sólida educação formal e leitura. Se, numa sociedade, ambas fracassam (não há nem educação formal de alta qualidade, nem leitura, porque, grosso modo, a educação atual não educa o sujeito para ler), os poetas acabam por se tornar pseudopoetas, acríticos, vaidosos e entontecidos pelas possibilidades que a tecnologia oferece e nas quais, não raramente, não se deve confiar. Um poeta, para ser grande e ecoar, precisa, antes de tudo, de talento e de uma robusta formação educacional e intelectual, de modo que, sem percalços, angarie credibilidade e, por fim, devoção. Em duas palavras: Castro Alves.”


Cidade singular | Entrada
(17/04/2013)
leia aqui

“(...) A Literatura trabalha com visões de mundo singulares, pontos de vista diversos, investe na forma e acentua o estilo, tanto na linguagem quanto no dinamismo com que articula as partes de uma trama ou de um poema, por menos específicos ou mais pessoais que sejam. Impõe um sentido ambíguo à condição humana e representa o mundo, este em que vivemos e outros, enfatizando as suas possibilidades, o que resulta no aumento do senso crítico do leitor, em lugar de embotá-lo na mesmice da repetição. Cada autor será, por sua vez, um mundo novo e um estilo único, aos quais os leitores vão se habituar e onde vão permanecer, enriquecendo-se, até que uma nova leitura, de um outro Autor, os chame e os conquiste, para revigorantes experimentações.”


          “(...) Sabemos, de há muito, o quanto os brasileiros amam diminuir e até destruir gratuitamente seus artistas e heróis, e não seria nenhum disparate se algum leitor, aqui despertado, descobrisse que Coelho Neto tem valor e ainda é legível e atual.
          Há contos magistrais neste livro [Os melhores contos de Natal (Círculo do Livro, 1988)], que forma, em parte e no todo, um espectro profuso e variado de vozes e cores, no qual teses pró e contra o Natal emergem, elevando este acontecimento e impondo aos leitores horas de prazer e proveito. Missa do Galo, Cântico de Natal, Como Papai Noel chegou a Simpson’s Bar, Sonho de uma noite de Natal, Natal no rancho e Markheim são, talvez, os mais famosos. Todos, porém, deixam sua contribuição tanto para uma compreensão mais profunda do Natal quanto da vida, espécie de contraponto ao que se espera da noite natalina. Neste aspecto, um dos melhores contos é, sem dúvida, o de Górki, pois, em sonho, seus personagens natalinos, quase todos pobres e tristes, voltam para lhe cobrar que seja menos cruel, pois a vida já o é, suficientemente. Um dos personagens lança-lhe na cara esta prédica: ‘Por que escreveu essas coisas? Para que vive inventando essas desgraças, essas tristezas? Que pretende com isso? Desfazer o que resta de fé e esperança no coração dos homens? Tirar-lhes a confiança na redenção, mostrando-lhes somente o mal? Aniquilar o desejo de viver, apresentando a existência como um suplício sem fim e sem remédio?’ O narrador, estarrecido, mal consegue balbuciar uma defesa, alegando que é o que fazem todos os escritores, imaginam ‘cenas bem tristes, bem tocantes, para despertar’, em seus leitores, ‘sentimentos compassivos, abrir os corações à piedade’.
          Metalinguístico e, ao mesmo tempo, um belo relato natalino, este conto ironiza com o encarceramento dos autores aos gêneros, sugere que precisam ser mais ousados e admite que, aqui e ali, os personagens tomam as rédeas das criações literárias e, à revelia do autor, abrem e fecham portas. Ao findar sua leitura, me lembrei do que me disse, recentemente, uma jovem leitora a quem perguntei sobre suas leituras de Máximo Górki. Ela simplesmente me disse que deixou de ler Górki, porque leu em algum lugar que ele escrevia mal. Mal ou aquém ou além do gosto e da capacidade de compreensão de quem o leu e criticou? É o mistério.”


“(...) Fogo fátuo [de Pierre Drieu La Rochelle] pode ser lido como um libelo contra as drogas, tanto quanto uma reflexão sobre a existência: a liberdade de existir ou deixar de existir, a qualquer momento. Na excelente introdução à edição brasileira, assinada por Geraldo Galvão Ferraz, também tradutor da obra, este afirma que o protagonista Alain foi inspirado num amigo de La Rochelle, o talentoso escritor Jacques Rigaut, que se matou do mesmo modo que o personagem. O suicídio de Rigaut virou uma obsessão para La Rochelle, que, embora tenha escrito, no calor da notícia, o texto Adeus a Gonzague, só se livrou realmente do trauma ao conceber Fogo fátuo, no qual a morte voluntária é vista como ‘o único ato livre que resta para os viciados’, pois é ação pura e consciente, liberta do embotamento fantasioso das drogas. No caso de La Rochelle, que também se matou, o suicídio teve outras implicações e outros motivos, e foi como se ele saldasse uma dívida, consigo e com sua época.”


Centenário de Albert Camus, 2
(17/08/2013)
leia aqui

“(...) Com Abaixo de zero (Less than zero, 1985), Bret Easton Ellis apareceu para o mundo da literatura, e o fez de maneira contundente, descrevendo, num estilo seco e sem envolvimento emocional, o universo alienado dos jovens ricos da Califórnia. (...) As conversas são vazias e giram sobre assuntos os mais fúteis. Eles não apreciam nada, e nada lhes importa, senão as canções do momento e as drogas, que os mantêm estimulados. As relações amorosas são efêmeras e, em geral, não vão além de uma trepada, num estado de ânimo tão intenso que faria desaparecer a espécie. Um motor de desencanto e impaciência conduz suas vidas, que, durante aquele mês, avançam mais um pouco em direção ao nada e ao fim. Quase ao final do livro, o narrador, que, sem dúvida, nos assusta com sua passividade e seu alheamento, incapaz de pronunciar qualquer reflexão, praticamente se justifica e define seu comportamento estoico e niilista: ‘Não quero me interessar. Se eu me interessar pelas coisas, vai ser pior. É menos doloroso não ligar’. Creio que ele está certo. Como creio que este livro é tão mortal quanto um tiro. Experimente. Ou não. Às vezes, é melhor não ler. Não leia!”


          “Quando alguém me diz assim, ‘Detesto Woody Allen’, já sei que, qualquer que seja a relação, o humor será difícil. Se Mario Quintana nos ensinou que devemos desconfiar das pessoas cujas casas não possuem livros, mais ainda devemos de quem não gosta de Woody Allen, pois não tem humor, não entende ironia e leva a vida muito a sério. Não é o caso do Juvenal Juvêncio Fake, autor do hilariante Whisky com bolachas (Casarão do Verbo, 2012).
          Nascido de uma brincadeira que um anônimo fez no Twitter e no Facebook com o presidente do São Paulo Futebol Clube, o verdadeiro Sr. Juvenal Juvêncio, o livro transforma o futebol, tema não raro de grandes debates pseudofilosóficos ou de acaloradas pancadarias, no palco ideal de duas intenções: ironia e humor. (...)
          Se me lembrei de Woody Allen e o usei para começar este texto, é porque inevitavelmente associei algumas das frases mais risíveis do Juvenal Juvêncio Fake às tiradas bem-humoradas do ator e diretor norte-americano. (...) Em 6 de outubro do ano passado, o São Paulo venceu o Palmeiras por 3x0, com um gol em que Lucas dá um drible desconcertante no zagueiro Márcio Araújo e toca para um companheiro arrematar. A conclusão do Juvenal Juvêncio Fake sobre o lance é a seguinte: ‘O drible de Lucas foi tão genial, que machucou a coluna do Márcio Araújo na ida e curou na volta. Ele nem sabe ainda que sofreu a lesão’. Perfeito! Puro nonsense.”


“Os patrulheiros cinema-novistas não o deixavam [Walter Hugo Khouri] em paz, por constituir uma voz dissidente e única, cujos filmes escolhiam o indivíduo em detrimento do contexto e do tempo, enfatizando seu estado de ânimo. As angulações são subjetivas, silêncios contrastam com uma trilha sonora abstrata e nervosa, metáforas surgem espontaneamente, ideias entram em choque, a nudez é sempre poética e metonímica, e os pensamentos íntimos dos personagens emergem na tela sem a mediação de qualquer palavra. Noite vazia (1964) e Corpo ardente (1966) formam com As amorosas uma espécie de trilogia do desespero e do vazio.”


“(...) Certa vez, na feira de livros no Campo Grande, uma jovem repórter de A Tarde me procurou para uma entrevista. Sua primeira pergunta foi: ‘Por que se lê tão pouco na Bahia?’ Respondi, sem hesitar: ‘Por que a nossa Educação não educa as pessoas para ler’. É a verdade, mesmo que não queiramos admitir.”


A coleção Matéi Visniec
(30/05/2013)
leia aqui


Lisístrata (411 a. C.), de Aristófanes (nascido em 445 a. C., morto entre 385 e 380 a. C.), é uma das mais importantes peças gregas do período clássico. Só não é mais cultuada que as célebres tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. E, obviamente, por se tratar de uma comédia, classificada como ‘gênero menor’ por Aristóteles, não recebe a devida atenção do público, da crítica, nem dos estudiosos. O riso, mesmo hoje, ainda é preterido em favor do páthos da tragédia ou do drama. Mas foi em Lisístrata que o cineasta Radu Mihaileanu buscou inspiração para o seu excelente filme A fonte das mulheres (...) [que] promove um debate acerca de importantes questões, como a condição da mulher árabe, sempre vista à sombra de uma suposta supremacia masculina e à qual veta-se o direito à voz e à opinião, bem como ao conforto e ao conhecimento. No auge de sua heterodoxia, o filme propõe que se proceda a uma leitura crítica do Alcorão, seguida de uma revisão dos dogmas impostos, adotados convenientemente para o proveito dos homens. Pelos lábios de Lisístrata, aprendemos que ‘onde está o tesouro está o poder’. Pelas atitudes daquelas mulheres árabes, seus maridos compreendem, de uma vez por todas, que, se o tesouro da fonte é a água, o das mulheres é o ‘amor’.”


“A generosidade perdeu o seu arquétipo. Morreu hoje, pela manhã, o historiador Ubiratan Castro de Araújo, diretor geral da Fundação Pedro Calmon, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da UFBA, e membro da Academia de Letras da Bahia. Conheci o prof. Ubiratan em 2008, quando cheguei para trabalhar na FPC. Desde então, aprendi com ele muitas lições, mas a maior de todas foi a de que ainda existe, neste mundo, generosidade sem intenções de crédito e débito. Ele era generoso porque era generoso, e um humanista. Um ótimo exemplo aconteceu em setembro, não por acaso o meu último encontro com ele. Eu estava em minha sala, trabalhando, e recebi o recado de que ele queria falar comigo. Subi, fui recebido em sua sala, ele me cumprimentou, alegre e empolgado como sempre, e foi logo perguntando como estava a edição do livro O automóvel, conto de Herberto Sales que a FPC e a editora Casarão do Verbo publicaram em dezembro, na coleção Estante de Bolso. Falei que a digitação estava pronta, em fase de revisão, e que em breve eu montaria o original para enviar à editora, onde se daria a editoração. Depois, acrescentei que, até a impressão, todo o processo consumiria em torno de dois meses e que, sendo assim, dificilmente cumpriríamos o cronograma, para lançamento em novembro. Pacientemente, e com humildade, ele respondeu que não era preciso pressa, que aprontássemos o livro sem agitação e o lançássemos em dezembro. Foi a última vez que nos encontramos, e esta é, sem dúvida, uma cena poderosa, que revela o quanto o prof. Ubiratan era generoso e humilde. Ele não viu o lançamento de O automóvel e já não vê as cores deste mundo, mas continuará existindo para todos aqueles que com ele conviveram e que aprenderam, com sua forma cortês de lidar com as situações mais corriqueiras ou extremas, que a dimensão da sabedoria de uma pessoa tem a medida de um gesto simples, sem soberba.”


“Emmanuel Mirdad, um dos mentores da Festa Literária de Cachoeira (FLICA), postou em seu blogue, alguns trechos de sua preferência, extraídos de Cidade singular (Kalango, 2013). Recentemente, conversamos sobre o livro, e ele me falou dos contos que mais apreciara, expondo os motivos e comentando algumas passagens. Como autor, sempre me surpreendo com os efeitos que um conto provoca no leitor, bem diversos da motivação que me levou a escrevê-lo. Lembro-me de Mirdad me perguntar sobre o conto Muros, ao que eu respondi que era um dos meus favoritos, mas, certamente, por uma razão completamente diferente da que ele ou outro leitor viesse a apontar. Na verdade, como falei que gostava de Muros, ele não disse nada, talvez porque, por elegância, não quisesse confrontar o autor. Minha preferência por Muros se justifica pela forma, especialmente o tom das frases, o ritmo da trama e o uso do tempo verbal presente, que confere ao relato uma expressividade poética e onírica. Não se assemelha em linguagem e estrutura a nenhum dos demais contos e, por isso, é quase um ente estranho ao conjunto, o que me parece o bastante para ressaltá-lo.”


Mayrant Gallo (foto: Lima Trindade)

Presentes no blog NÃO LEIA!, de Mayrant Gallo, postagens Gallo no Balaio: entrevista (26/05/2013), A vida dentro dos livros, 3 (25/05/2013), Centenário de Albert Camus, 2 (17/08/2013), Maigret e o silêncio do poeta (25/04/2013), A coleção Matéi Visniec (30/05/2013), Leituras, 33: Arte do romance (06/08/2013), “A estrada” do fim do mundo (25/02/2013), A vida dentro dos livros, 2 (26/01/2013), Cidade singular | Entrada (17/04/2013), Meus “amigos” patrulheiros (05/05/2013), A ponte da insensatez (01/03/2013), Poetas da pseudoinformação (02/01/2013), Como ler os grandes autores (11/09/2013), Leituras 37: Contos de natal (25/12/2013), Fogo fátuo (09/06/2013), Leituras, 31: Abaixo de zero (23/07/2013), Leituras, 28: Whisky com bolachas (26/06/2013), Cineconhecimento, 5: O vazio (26/08/2013), Bahia: educação sem leitura (27/02/2013), Vá e veja, 20: A fonte das mulheres (25/08/2013), Modelo de generosidade (03/01/2013) e Trechos singulares (12/08/2013), respectivamente.

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