Alex Simões (foto: Caio Lírio)
assim na terra como no selfie
Alex Simões
cultuamos idólatras a imagem
de nós mesmos a cada instante em todo
lugar. compartilhar não a paisagem,
mas compor a paisagem, sobremodo.
o pôr do sol ao fundo, ao canto, à margem,
riso em primeiro plano, em qualquer modo.
documentar-se a si mais que a viagem,
mais parecer que ser, coisa de doido.
fotografar até cair no abismo
— quem dera fosse uma força
de expressão apenas —, o consumismo
fez sua lojinha lá no alto da forca.
nosso fetiche-mor: comprar-vender-se,
não esquecer do flash até morrer-se.
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série de quatro
Alex Simões
I
nel mezzo del cammin
sua bunda balançando
no meio do caminho.
II
sua bunda balançando enquanto anda
depois que se despede da conversa
sobre literatura teatro e música
sua bunda balançando enquanto anda
queria ser um gay bem comportado
e não machista, respeitoso ao fato
de você não ser gay, mas qual o quê?
sua bunda balançando enquanto anda
desperta em mim vontades primitivas
tal qual fosse um viado das cavernas.
você sempre querido e eloquente,
sempre rindo do meu duplo sentido,
lindo de frente, mas nada é mais belo:
sua bunda balançando enquanto anda
III
Que importa a Bahia, a baía de Todos os Santos, o pôr do sol atrás da Ilha de Itaparica?
— [Enquanto aplaudem], o que eu vejo é sua bunda balançando.
IV
há
uma
crise
no
mundo,
dizem,
uma
guerra
internacional
iminente.
entretanto,
para
minha
egoica
alegria,
sua
bunda
balança,
indiferente.
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ora pro nobis
Alex Simões
são dias muito tristes, pesarosos,
de mortos alinhados em fileiras,
de néscios de si mesmos orgulhosos,
cavando sepulturas e trincheiras
que, abertas em fendas paralelas,
nos dão a sensação de andar à beira
entre umas e outras, nonada além delas
ou o que antes talvez fosse algum muro
pra quê? “Ora direis, ouvir estrelas”.
equilibristas que somos, no escuro,
se pardos, pretos, mais ainda invisíveis,
se indígenas, pretéritos futuros.
desviar de explicações, as mais plausíveis,
para legitimar os que cerceiam
as pautas silenciadas, verossímeis,
dos corpos dissidentes que tateiam,
ou lendo braile ou se reconhecendo,
se empurrando entre si e se alardeiam
prioridade às mágoas que vão tendo
pessoais e intransferíveis e exclusivas
e inintercambiáveis, vão não sendo.
por tanto tempo tantas evasivas
usadas pra abafar as próprias dores
que a afirmação se faz por negativas,
reivindicando só falar de amores
e existir. enquanto lá, do outro lado,
lutam para expressar os seus rancores,
do desejo pelo outro aniquilado,
e chamam liberdade de expressão
o ímpeto fascista recalcado.
não é possível fazer comunhão,
exceto para lembrar que ora pro nobis
dá tempo de roubar pro pobre o pão,
rezando a missa e a carne de pobre
sangrando as mãos de quem arranca os ossos
da terra em extrema unção urbi et orbi.
são dias muito tristes, pesarosos,
de mortos alinhados em fileiras,
de néscios de si mesmos orgulhosos.
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patchuli
Alex Simões
para Ivana Chastinet, in memoriam
entre um espasmo e outro
o respiro
não de alívio, não
um sussurro esconde
as palavras rasgando as paredes do quarto
ouço:
a voz que sai é mais grave
que o murmúrio que entra
aqui paz ou guerra ou luta
não fazem nenhum sentido
mas há recusa à dor
e à providência divina
entre imóvel e calado aceno:
o tempo gritando lá fora,
você ouve?
não o farfalhar das favas secas de andu
nem o ronronar dos gatos
no jardim são os passos arrastados dela
você só deseja um tempo
para
pensar
enquanto ela não chega
eu entendo que tudo o que posso fazer
é estar aqui
e já não digo nada
e respiro
e não penso.
uma agonia
esse saber-se
murchando.
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A EDUCAÇÃO PELA PEDRADA
Alex Simões
para Jorge Augusto
Porque a pedrada é pra: pegar visão;
para aprender na tora, é uma bala
à queima-roupa, um cachação verbal
(um cínico litotes, uma fala
neg-afirm-ativa, pedagogia
da dura, do chepo, não burilada,
nem bostética, a ideia reta
sem nada de caô, que vai na lata),
lição da pedrada que vai pro centro
da periferia e a tudo empala.
Outra pedrada educativa: o não,
(do centro pro gueto, bem antipática)
pra aquele que não sabe se ligar
(e talvez não adiantasse nada)
que dar pedrada na selva de pedra
é faísca no paiol da barricada.
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“um fóssil pinaúna não
é belo por não ter espinhos.
pelo contrário, sua beleza
reside justamente no
fato de um dia ter sido
ente espinhoso e peçonhento,
(...)
lição da pedra que machuca
porque a beleza do difícil
é não mostrar-se no que mostra.
um fóssil pinaúna não,
um modo de dizer-se vivo
porque toda beleza fere.”
“não consigo pôr ordem na casa
porque não há nenhum sentido em pôr ordem,
menos ainda em progresso.
o que me dá aflição não é o terror
que vem de cima,
mas o silêncio pontual quando podia um grito
dizer o nosso desespero,
mas não.
há tanto barulho todo o tempo,
os decibéis explodindo nossos tímpanos
porque eles não querem escutar
o próprio silêncio que aquiesce
com o horror autoritário que medra em nossas esquinas.
o caos não é meu,
é nosso.”
“vendo tudo daqui, da torre,
me parece um tanto agoniado
sair por aí, se esbarrando
em gente que não tem mesura
do abismo em que todos estamos”
Presentes no livro de poemas “assim na terra como no selfie” (Boto-cor-de-rosa / paraLeLo13S, 2021), de Alex Simões, páginas 57, 38-41, 61-63, 20-21 e 56, respectivamente, além dos trechos dos poemas “sem título” (p. 36-37), “traquitanas” (p. 42-43) e “daqui da torre” (p. 18), presentes na mesma obra.
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