Pense que num mesmo disco de rock você pode encontrar as vozes de Glauber Guimarães (ex-Dead Billies), Teago Oliveira (Maglore), Nancy Viégas (Radiola) e Mauro Pithon (ex-Úteros em Fúria), e que apresenta a sensível voz folk de Rodrigo Pinheiro (Mulher Barbada). E que, por mais inacreditável que pareça, tem a ilustre presença da voz de floresta, ancestral, do mestre septuagenário Mateus Aleluia (ex-Os Tincoãs), um dos mais importantes e referenciais artistas da música afrobaiana. Que disco é esse?
Trata-se do autointitulado álbum da banda de rock progressivo & blues psicodélico Orange Poem, de Salvador, Bahia, que será lançado nas plataformas digitais na próxima sexta, 30 de julho. Produzido pelo compositor, escritor e produtor Emmanuel Mirdad, criador e coordenador da festa literária Flica, o álbum foi gravado pelo experiente Tadeu Mascarenhas, do estúdio Casa das Máquinas, responsável por vários discos da nova música baiana, uma referência no mercado.
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As 18 canções do álbum “Orange Poem” são quase todas de Emmanuel Mirdad. As letras são poemas em inglês, que tratam da condição humana, indagações, conflitos do íntimo, transcendências, angústias, revelações e relações espirituais, com algumas homenagens a ícones como Pink Floyd, Raul Seixas, Clarice Lispector e Salvador Dalí.
A banda Orange Poem
ORANGE POEM
Formada em 2001 por Emmanuel Mirdad (voz e violão 12 cordas), Marcus Zanom (guitarra), Hosano Lima Jr. (bateria), Artur Paranhos (baixo) e Saint (guitarra), a Orange Poem apresentou a sua singular sonoridade baseada no psicodélico rock progressivo em inglês, misturado ao blues, folk, groove e hard rock setentista. Pertencente à geração 00 do rock baiano, de bandas cantando em inglês como The Honkers e Plane of Mine, a Orange Poem fez shows no circuito alternativo de Salvador, gravou dois discos em 2005 e 2006 (no Casa das Máquinas por Tadeu Mascarenhas), e terminou as suas atividades em 2007.
Sete anos depois, o produtor Emmanuel Mirdad, descontente com os vocais que gravou, selecionou 18 músicas desses discos para serem repaginadas com novas vozes, instrumentos (Tadeu Mascarenhas e as suas teclas foram incorporados à banda) e mixagem, e as lançou virtualmente no formato EP, com três músicas cada, ao longo de 2014, no YouTube e SoundCloud da Orange Poem: “EP Ground”, com Glauber Guimarães, “EP Unquiet”, com Rodrigo Pinheiro, “EP Wide”, com Nancy Viégas, “EP Balance”, com Mauro Pithon, “EP Ancient”, com Mateus Aleluia, e “EP Crowd”, com Teago Oliveira. A banda não voltou para fazer shows, e o material ficou disponível na internet.
YouTube da Orange Poem
SUCESSO NO YOUTUBE
Outros sete anos se passaram, e nesse pandêmico 2021, os números impressionam: mais de 390 mil views no canal da Orange Poem no YouTube (acesse aqui), milhares de downloads e players no SoundCloud (acesse aqui), sem nenhum impulsionamento, shows, videoclipes ou investimento em divulgação e publicidade. Mirdad avalia: “Tudo no boca-boca, uma gratíssima surpresa!”.
Para celebrar o legado dessas canções, o produtor decidiu compilar as 18 músicas no álbum “Orange Poem” e disponibilizá-lo nas plataformas digitais (a capa traz uma foto do turco Meriç Dağlı). “Nesses últimos anos, as pessoas tinham acesso às músicas, muito por conta do EP com meu pai e Mateus Aleluia, e cobravam para ouvi-las no Spotify”, explica Mirdad.
Muito desse sucesso “póstumo” da Orange Poem é graças à única faixa em português, em que o poeta Ildegardo Rosa recita um compilado de poemas, com a base psicodélica da laranja e os vocalizes do gigante Mateus Aleluia. “Illusion’s Wanderer” (ironicamente o título é em inglês) é a campeã dos acessos, com mais de 240 mil views.
Poeta Ildegardo Rosa (1931-2011)
ANCESTRODÉLICO
O convidado mais especial das regravações do poema laranja tem a voz aveludada, forte, de floresta e ancestral. “Um presentão!”, sintetiza Mirdad. Trata-se do septuagenário cantor e compositor Mateus Aleluia (ex-Os Tincoãs), um dos mais importantes e referenciais artistas da música afrobaiana, que encontrou o som progressivo e psicodélico da Orange Poem e inaugurou, de primeira mão, o som “ancestrodélico”.
“Encontrei Seu Mateus gravando umas músicas no estúdio de Tadeu e depois de uma boa conversa, sugeri que gravasse umas canções laranjas, pois a psicodelia é transcendental, assim como a voz do mestre cachoeirano. Para minha surpresa, ele topou, depois de ouvir o som e achar interessante, gostar das letras. Foi inacreditável ele aceitar assim tão de boa, na maior tranquilidade. Fiquei impressionado, é uma honra imensa para mim e para a banda”, ressalta o produtor.
Foi a primeira vez que Mateus Aleluia gravou um blues: o épico “Cuts”, com destaque para os belos solos do guitarrista Marcus Zanom, fã dos Tincoãs. “Um dos motivos que fizeram Seu Mateus topar o desafio de cantar em inglês e num som psicodélico foi a afinidade com o sentimento dos solos de Zanom. Um grande encontro!” (veja aqui um depoimento de Mateus para Zanom).
Zanom trocou a guitarra pela sanfona etérea, com delay, pela primeira e única vez na banda ao gravar na música-poema “Illusion’s Wanderer”, que é uma ode ao despertar do homem, com a voz nordestina do poeta e filósofo Ildegardo Rosa (1931-2011), o Mestre Dedé, recitando em português um compilado de 15 poemas seus elaborado pelo filho Emmanuel Mirdad, compositor da harmonia. Mateus Aleluia, que sempre teve uma ligação muito forte com a poesia, com a elaboração das palavras no melhor do verbo para propagar uma mensagem, se identificou com o trabalho filosófico-poético do Mestre Dedé, apresentou o poeta e fez vários vocalizes na parte épica-progressiva de “Illusion’s Wanderer”.
“A experiência da gravação foi sobrenatural. Seu Mateus é um ancestral, que tem uma multidão de guias que ilumina os caminhos por onde ele trilha. E essa faixa proporcionou o encontro de dois caboclos. Propus para Seu Mateus gravar vocalizes espirituais enquanto meu pai recitava seus bardos metafísicos e a fusão ficou de outra dimensão, dois seres da mata e todos seus guias num encontro além da matéria, perpetuado pelo som”, viaja Mirdad.
Com a potente voz de floresta, grave de chão-terra e agudo de folhas-vento, Mateus Aleluia gravou também “Clouds, Dreams”, sobre um ser que ajoelha o ego e se confunde entre o bem e o mal, guiado por uma fé enigmática. Etérea progressão de tom menor para maior, a canção é construída pela combinação de vários vocais entoados como um cântico espiritualista, violão 12 cordas, riffs e slides psicodélicos.
Os vocalistas nas sessões de gravação do álbum em 2013 e 2014
HOMENAGEM AO ROCK BAIANO
“Orange Poem” reúne grandes vozes do rock baiano num mesmo álbum. O cantor e compositor Glauber Guimarães (ex-Dead Billies e atual Teclas Pretas), com a sua voz de facão e timbre peculiar, gravou o blues “Rain”, a estradeira “Farewell Song” e a mãe da Orange Poem, a psicodélica “Last Fly”.
A cantora, compositora, produtora e múltipla artista Nancy Viégas (atual Radiola e ex-Crac! e Nancyta e os Grazzers), considerada uma das divas do rock baiano (ao lado de Pitty e Rebeca Matta), topou o desafio de gravar num tom bem mais grave que o seu e mandou ver na interpretação do blues “Wideness” e da psicodélica “Lost Mails”, e da única música composta até então pela banda, o groove rock progressivo “Shining”.
Completando a tríade sagrada do rock baiano feito desde os anos 1990, o cantor Mauro Pithon (ex-Úteros em Fúria e Bestiário), dono de uma voz furiosa, potente e rasgada, gravou as músicas da face pesada do poema laranja: o hino de taverna alemã “Child’s Knife”, a metaleira “The Green Bee” e a parceria entre Mirdad e Saint, o hard rock estradeiro “One and Three”.
Da nova geração do rock baiano, o cantor e compositor Teago Oliveira, da banda Maglore (radicada em São Paulo há anos), um dos principais nomes em atividade no país, gravou a piano progressiva “8/8/88”, a psicodélica épica “Melissa” e a experimental progressiva-psicodélica nervosa “Dubious Question”, uma homenagem a músicas do Pink Floyd com vocal de motosserra a la Motörhead. Além de Teago, também gravou no álbum “Orange Poem” o cantor Rodrigo Pinheiro (Mulher Barbada e ex-Besouros do Sertão), que interpretou com a sua voz folk a bela canção psicodélica “The Unquietness”, a estradeira progressiva “Neither Gods, Nor Devils” e “Homage”, que traz uma homenagem ao grande Raul Seixas.
“Para que ter um vocalista fixo? O primeiro, por exemplo, comprometeu as músicas e merecia ter sido demitido”, Mirdad comenta ironicamente, pois foi ele mesmo quem gravou a voz original das músicas. Complementa: “Como produtor, estou satisfeito e realizado em ter gravado com vocalistas que admiro muito! E fico muito feliz que agora temos o disco nas plataformas, a Orange Poem mais uma vez no mundo. Quem sabe a gente não volta para fazer uma live?”.
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