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Composições de Emmanuel Mirdad: Rain


Fiel representante do melhor lado laranja, o psicodélico progressivo, é o principal blues em F#m da obra de Mirdad, sua canção predileta do repertório Orange Poem. O poema é um retrato da solidão de um ser por escolha, por exclusão, que não significa sofrimento e sim a sobrevivência de sua integridade e caráter – uma homenagem aos seres que não devem nada a ninguém. A composição foi gravada pela banda The Orange Poem em 2004/2005, com destaque para os solos de Zanom e a voz regravada pelo cantor e compositor Glauber Guimarães em dezembro de 2013, para ser lançada virtualmente no EP Ground em janeiro de 2014 (e está presente no álbum Orange Poem, disponibilizado nas plataformas digitais em 2021).



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Rain
(Emmanuel Mirdad)
BR-N1I-14-00003

I always loved
Someone who never loved me
They always were gone...
Gone

I never trust
Anyone not even my own family
I’m so strange...

I’m alone in this world
I’m alone with no sorrow
Here I can be a true man

My God always was
A lost holy place,
I hate who explains heaven...
Heaven

My fun is to listen to shadows
The invisible dog plays with my dreams
“I don’t have a phone...”

I’m alone in this world
I’m alone with no sorrow
Here I can be a true man

Food and money are useless
My music feeds my loneliness
Shortly I disappear
Disappear


Faixa 02 - EP Ground (2014) | Faixa 07 - Orange Poem (2021) | Composta e produzida por Emmanuel Mirdad | Glauber Guimarães - voz | Mirdad - violão 12 cordas | Zanom - guitarra | Fábio Vilas-Boas - guitarra | Hosano Lima Jr. - bateria | Artur Paranhos - baixo | Participações especiais: Tadeu Mascarenhas - sintetizador e piano / Gabriel Franco - grito final | Gravado, mixado e masterizado por Tadeu Mascarenhas no Casa das Máquinas, Salvador-BA | Encarte EP Ground: Rafael Rodrigues (foto) e Glauber Guimarães (design) | Capa 2021: Meriç Dağlı (foto) e Emmanuel Mirdad (design)



CONTEXTO

No final de maio de 2001, eu não tinha nada além dos ensaios laranjas. 20 anos nas costas, um vagabundo sem emprego e sem estudo (aguardava ser chamado na 2ª lista para a Facom-Ufba) desde o início do ano. A situação ficou insustentável e eu decidi sair da banda que montei (e dirigia) para ir morar em Ilhéus, Sul da Bahia, onde havia uma suposta vaga de emprego. Voltaria pra Salvador só quando fosse chamado pra estudar. Na terça 29, desfiz a banda The Orange Poem e fui embora pra minha querida cidade onde passei a infância.

A família ficou feliz e mais tranquila – afinal, decidi-me por algo concreto e finalmente poderia estudar e trabalhar (em hipótese). Hospedado como sempre na casa de minha irmã Tita, trouxe uma mala cheia e a afirmação de que se a UFBA não me chamasse, prestaria novo vestibular na Uesc e ficaria morando na cidade de vez. Mas tudo mudou na sexta 1º de junho.

Muita chuva, uma crise alérgica braba, ansioso pela resposta do tal emprego, fui tocar violão. O banzo chegou com força e a vontade de retomar a banda foi inevitável. Ilhéus reloaded foi implodida de vez quando meu cunhado Luiz avisou que o tal emprego já estava ocupado há muito tempo, ou seja, na "Terra do Cacau", eu era mais um desempregado sem estudo; ralar atrás de um emprego no interior era incomparavelmente muito mais difícil do que na capital. Na hora do almoço, surpreendi a família: vou voltar pra Salvador na segunda. Como assim, se tinha acabado de chegar? Novamente meu pai mestre, o grande Ildegardo Rosa (1931-2011), segurou a barra e me apoiou. Voltei, continuei sem emprego, retomei Orange Poem em junho ainda e só fui entrar na Facom em janeiro de 2002 por causa de uma maldita greve enorme. Quem financiou o "vasp" artista? Mestre Dedé.


ORIGEM

Quarta, 6 de junho de 2001. Acordei triste com os foras da ex-namorada da época. "Pensei que você indo para Ilhéus iniciaria uma nova vida, mas agora que voltou, sem nada, continua o mesmo de antes" define bem os cortes. Toma Mirdad. Além disso, o fracasso reloaded do contexto, melancolia, solidão. Ótimo clima para compor. Fui tocar violão – só tinha isso mesmo para fazer – e a angústia temperando. E a frase "I’m alone" martelando na cabeça desde que acordei.

Relembrando músicas antigas, toquei por acaso a primeira versão de "One and Three" (canção do repertório TOP), só que em ritmo mais lento, de balada depressiva.  F#m, E e A: a harmonia pariu uma nova melodia, embrião. Do meio dia até às duas da tarde, sem parar para almoçar, escrevi o poema direto no inglês, derivado da frase matinal que me encheu o saco, e estruturei a melodia baseada numa reciclagem de harmonias (base da versão abandonada de "One and Three" e o refrão de "Capricorniana", registrada no álbum "O Primeiro Equilíbrio" [2000], do projeto Pássaros de Libra). Maravilhado com o resultado, toquei a recém-nascida "Rain" repetidamente por mais de duas horas. Sem parar. Expurguei os demônios e espantei a sedução do suicídio.

Papel original digitalizado de onde escrevi a letra, mas com as correções da última versão


CONSTRUÇÃO

"Shining Life, Confuse World" foi o primeiro CD da Orange Poem, lançado em setembro de 2005 com 12 músicas. Um parto que começou na quinta 13 de setembro de 2001, quando eu defini as faixas do repertório. Ou seja, a banda passou 4 anos ensaiando as mesmas músicas, com diversas tentativas amadoras de registrá-las – obviamente fracassamos – até resolver com a gravação profissional no Casa das Máquinas de Tadeu Mascarenhas. E a maluquice de se investir tanta grana e tempo para registrar exatamente as 12 músicas do 1º repertório.

Pois assim que aprontei "Rain", ela entrou de cara no repertório, sendo a última canção eleita para fazer parte do debut "Shining Life, Confuse World". Porém, somente depois de sete ensaios (e de dois baixistas fora da banda), finalmente a laranja trabalhou a canção pela primeira vez. Sábado, 15 de setembro de 2001, a 40 minutos do fim do 15º ensaio TOP, a banda surpreendeu e assimilou a música rapidamente, mas ela ganhou outra forma, diferente da balada tristonha a la Radiohead que compus, tornando-se um blues, com arranjos precisos de Álvaro M. Valle (o 2º baixista fixo, substituto de Rajasí Vasconcelos) e do baterista Hosano Lima Jr. Foi um grande resultado, que empolgou a todos, muito mais Fábio Vilas-Boas, que passou a gostar de "Rain" (quando apresentei-o à versão original muito depressiva e lenta, o guitarrista condenou: "essas coisas com ‘love’ eu não gosto").

Confesso que me senti um pouco lesado com a mudança; percebi que o blues suavizou o precipício em que "Rain" foi composta, mas terminei aceitando ao compreender que essa versão era mais palatável ao público. A canção foi importante para democratizar os espaços de solos dos guitarristas laranjas. Inicialmente escalado para ser o guitarrista base, Zanom foi conquistando seu brilhante lugar de solista aos poucos, como em "Diet of Dust" e "The Unquietness", e em "Rain" ele pode confirmar 100% que na Orange Poem, blues tinha que ser com ele.

Registro do show no Havana Bar.


QUASE MOSH

Em 2002 e 2003, a Orange Poem só fez três shows. "Rain" esteve presente, sempre arrancando aplausos e uma eficiente performance da banda. Já com Artur Paranhos no baixo (no lugar de Álvaro M. Valle), fizemos um show no saudoso Havana Music Bar na Dinha, ponto mais boêmio do mais boêmio bairro de Salvador: Rio Vermelho. Noite de uma quarta, véspera de feriado, 30 de abril.

Ofereci "Rain" em homenagem à banda Soma (pra mim, a melhor da geração 00 do rock baiano), do amigo Rogério Alvarenga, produtor da noite (que também produziu o nosso 1º show em janeiro de 2002). A solidão do blues combinava com o single e aura "Eu, o Alien" da banda triste soteropolitana.

Enlouqueci. A execução brutal da laranja me fez surtar, pulando e balançando o corpo e violão pra tudo que é lado. Até o famigerado grito gutural "lasca garganta" do final eu fiz – era feito até então pelo ex-baixista Álvaro. A plateia foi ao delírio e eu quase me joguei Dinha abaixo. Parei no limite da janela (o palco improvisado era colado nas janelas que davam no largo), e perdi a oportunidade de ter sido o primeiro a dar um mosh mortal na Dinha. Talvez não estivesse aqui hoje, mais de dez anos depois. O jornalista Luciano Matos, presente no show, resenhou depois em seu blog: "The Orange Poem, instrumental lá nos anos 70, meio Pink Floyd com um vocalista afetado". Afetado? Pode isso, Arnaldo?

Gabriel Franco grita no final de "Rain" em julho de 2004.


O GRITO

"I disappear" termina o poema de "Rain". É aí que o berro dissolve o ser dentro do blues. Nos ensaios quase nunca eu fazia. Ficou ao encargo de Álvaro. Depois, dos convidados dos ensaios. No 3º show o berro quase me impulsionou Dinha abaixo. Mas foi na festança do 50º ensaio TOP, sábado 17 de janeiro de 2004, que o amigo e músico participante do furdunço comemorativo Gabriel Franco apresentou a sua potente versão para o grito gutural. E que berro, meu amigo! Abalou tudo. Não me esqueci.

Domingo, 18 de julho de 2004. Na estreia do projeto "Agente Laranja Gueto Cultural", uma série dominical de sete shows da Orange Poem e convidados no saudoso Tangolomango Bar (minha estreia como produtor cultural), fiz questão de convidar Gabriel para gritar no final de "Rain". Pois foi um grito tão primal, tão espetacularmente angustiante, rasgado, visceral, potente, que impressionou o público presente e me fez definir ali mesmo que teríamos a obrigação de registrá-lo na gravação profissional de "Rain". Arrematei: "é uma homenagem aos seres que não devem nada a ninguém".

Na quinta 6 de janeiro de 2005, 12ª sessão de gravação no estúdio "Casa das Máquinas", o amigo Gabriel Franco eternizou o seu feroz berro gutural no final de "Rain" (eu ainda usaria este arquivo em 2006 numa das faixas do CD-poema "Ilusionador", meu TCC na Facom/Ufba).

Hosano Lima Jr. por Alexandre Strube.


GRAVAÇÃO

Sábado, 27 de novembro de 2004, primeira sessão de gravação do CD "Shining Life, Confuse World", estúdio "Casa das Máquinas", de Tadeu Mascarenhas. Hosano Lima Jr. veio inspirado e gravou todas as 12 músicas, de acordo com o planejado. Correto, criativo, seguro e perfeccionista, foi muito reverenciado por todos, mesmo sem o metrônomo – que ele tanto pediu e foi sumariamente cortado por mim (em nome de uma suposta "naturalidade", cometi o maior erro de minha carreira como produtor musical),resumido nas palavras de Zanom: "Há muito tempo que não vejo você tocar assim, nos ensaios você não faz isso!".

O guitarrista Fábio Vilas-Boas gravou suas pontas psicodélicas em "Rain" na terça 30. Encerrou com o seu único solo na música (depois do 2º refrão), insano e visceral, arrancando muitas risadas de Tadeu, que repetia sempre: "que figura, muito doido". Artur Paranhos gravou bem a sua eficiente adaptação do arranjo de baixo de Álvaro M.Valle no sábado 18 de dezembro.

Fábio Vilas-Boas e Artur Paranhos por Alexandre Strube.


Depois do Natal, perto do fim de 2004, Zanom pediu pra gravar "Rain". Era uma terça do verão, tarde do dia 28. Eu (produtor do álbum) e Tadeu insistimos para ele terminar "Wideness", mas ele queria deixar pra depois. Concordei e pedi para que ele aproveitasse a então equalização "seca" pra gravar o solinho ambientador depois do solo insano de Fábio. Zanom cumpriu bem. E continuou a solar, agora com mais efeito, evidenciando a pegada blues tão característica do seu melhor som. O engraçado foi que todo solo que ele gravou nessa temporada do 1º CD, o definitivo foi o primeiro. Nenhum "tente de novo" ou "deixa eu tentar de novo" deu certo. Cadenciado, Tadeu já repetia antes da próxima: "eu gostei mais do primeiro" ou "o primeiro tá melhor". O problema foi gravar a base pesada. O guitarrista de Itapuã teve dificuldade de encontrar o tempo; reclamou vários "tá pra frente", sem metrônomo era foda. Mas o melhor ficou para o final. Ao invés de "descer a mão" a la Hendrix, Zanom preferiu seguir com a sua linhagem Gilmour e gravou um solo de slide que não tinha apresentado antes nos ensaios da pré. Fiquei muito surpreso, e deixei acontecer a linda inovação do amigo libriano. Bravo, Zanom!

Zanom por Alexandre Strube.


Antes de 2004 acabar, na quinta 30, gravei o violão 12 cordas em "Rain" (emprestado por Alex Pochat, porque o meu deu problema com a afinação). Consumi um bom tempo de estúdio, porque o dedilhado tinha que ser limpo e preciso, e meus dedos estavam um bagaço – um mês sem tocar nas 12 cordas de aço. Assim, com muita raça e paciência, consegui finalizar a canção. Gravei a voz no quarto dia de 2005, inspirado em Roger Waters – em todas suas músicas, principalmente dos discos "Obscured by Clouds", "Ummagumma" e "The Wall Live", de onde tirei o clima para interpretar com sutileza e berros.

Emmanuel Mirdad por Alexandre Strube.


Na segunda 14 de fevereiro, penúltima sessão de finalização do álbum "Shining Life, Confuse World". Para o guitarrista Fábio, a 7ª faixa do disco não estava completa. Sentia a falta de um barulho de chuva na volta do seu solo, quando a música fica clean – bem no solo clean de Zanom. Eu decidi pagar pra ver e Fábio gravou a chuva de "Rain" com um saco plástico amarelo de um restaurante chinês – primeiro vazio, mas depois, por minha sequela, cheio com as coisas que o guitarrista tinha trazido ao estúdio: chave, carteira, plástico já vazio dos biscoitos comidos, etc. O amigo amassou um pouco a textura, com a paciência necessária pra se fazer chover. Gostei tanto do efeito inusitado que além do lugar pretendido pelo criador, decidi começar "Rain" com a chuva de Fábio (harmonizava melhor a passagem da faixa anterior "Wideness" para ela). Na versão final de 2013/2014, Glauber Guimarães sugeriu e eu acatei o corte da chuva (não havia mais a necessidade da passagem), começando a música já à vera com a banda completa, como originalmente Zanom preferia. A chuva de Fábio acabou ficando apenas onde o seu criador queria.


GAVETA

"Shining Life, Confuse World" foi lançado na sexta 23 de setembro de 2005, no saudoso World Bar, na Barra – Salvador/BA. com o baixista Fabrício Mota no lugar de Artur Paranhos. Lembro que no show fiz o grito gutural de "Rain", uma raridade de acontecer. No dia anterior, tinha saído uma matéria de página inteira do jornalista (e colega faconiano) Pedro Fernandes no saudoso Caderno Dez, do jornal A Tarde, sobre o lançamento e resenhando o disco. O blues apareceu bem: "Mas é no rock progressivo que o álbum melhor se realiza. Então, quando "Rain" chega, a certeza de que a alma da banda está em um som mais viajante se confirma".

No cafofo do World Bar, a Orange Poem fez mais três shows da temporada do Laranjada Rock, a produção minha de maior fracasso de público. Ao menos no sábado 15 assisti ao vivo a minha primeira aparição na TV (primeira e única do TOP), no programa "Soterópolis" da TVE. "Rain" foi a canção mais utilizada e a que fecha a matéria. Mas o álbum foi pra gaveta, pois 2006 foi investido na gravação de um novo CD.

Capa de Shining Life, Confuse World (2005).


Enquanto o lançamento de um álbum é o primeiro passo profissional da carreira, de onde as bandas/artistas começam de fato a divulgar seu trabalho, lançando singles, produzindo clipes, acertando shows, negociando com produtores de festivais, divulgando na imprensa, etc., o 1º CD da Orange Poem significou o fechamento de um ciclo de 4 anos. Ninguém aguentava tocar mais as mesmas músicas. E os discos encalharam (tenho três caixas intactas entulhadas em casa, num total de 450 discos). Ainda mais quando descobri diversos erros e desconsiderei quase metade das músicas do álbum. Era como se "Shining Life, Confuse World" fosse um demo, e o próximo de fato seria o primeiro da discografia. Gravamos e a banda acabou. Nem um, nem outro.

Glauber Guimarães grava a voz e
Tadeu Mascarenhas observa (dezembro 2013).


VERSÃO FINAL

The Orange Poem voltou em 2014 com o EP Ground e a proposta de novos vocalistas. Meu amigo, o cantor e compositor baiano Glauber Guimarães, realizou um sonho antigo e topou gravar três músicas laranjas com a sua voz. A versão final de "Rain" foi eternizada em dezembro de 2013, com três sugestões de Glauber: manteve meu berro em "man" e o grito gutural de Gabriel Franco; o novo início com a banda completa e sem a chuva; uma nova gravação de um cravo para o refrão. Tadeu Mascarenhas topou o convite e gravou o piano e o sintetizador no timbre de cravo. Os laranjas aprovaram as mudanças, e eu também criei, interrompendo a bateria na voz gravona e potente do trecho "Food and money...". Com o timbre ácido-singular de Glauberovsky e os solos de puro feeling de Zanom, a minha música predileta (a que mais me emociona e a que sempre escuto primeiro quando relembro a banda) da The Orange Poem (embora que a melhor canção seja "Melissa") ficou finalmente pronta para fazer a cabeça psicodélica dos ouvintes.

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