Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad
"O avô ainda forte, quase mudo, abrindo a boca apenas para comer ou para uma risada repentina, entregue por completo â contemplação e por ela absorvido e nela fortalecido, os filhos criados e distantes, mas que ainda aparecem um a um, como se obedecendo a um secreto acordo entre si, para pedir-lhe ou tomar-lhe dinheiro à força, sempre que ele acaba de vender cacau. Por enquanto um desses filhos ainda não chegara do Sul, sem aviso ou qualquer outro tipo de anúncio, para se associar aos outros e decretar-lhe impedimento legal e vender-lhe a propriedade. O que sobrou deu pra alugar uma casinha pro velho em Itabuna, arranjar mulher que dele cuide, o que não o impede de cair da cama e quebrar a perna e morrer logo depois, consumido de desgostos”
"E Luzinete: 'A fidelidade é invenção do ciúme, que por sua vez transforma o outro, o parceiro, em objeto de posse.' Ficaram em silêncio, até ele perguntar: 'Quer dizer que você não sente fidelidade por mim?' E Luzinete: 'Enquanto gostar de você, serei fiel'. Enquanto, enquanto, por enquanto. É que ela não me ama, pensou então Cazuza. Pelo menos, não ama com a minha intensidade, com a minha paixão. E Luzinete, parecendo adivinhar-lhe o pensamento torvo, disse aquele dia, aquela vez: 'Enquanto eu amar você, sou sua. Depois eu aviso, pra evitar encrenca. Não vá pensar que sua paixão por mim exige reciprocidade. Não posso oferecer o que não tenho, o que não terei. Se a gente se separar, continuo pensando em você, respeitando você, estimando você.' E ele respondeu que não ia aguentar. 'Aguentar? Mas se eu serei a mesma ... Apenas não estaremos mais juntos'"
"— Madrinha, por que a distância é azul?
Ela respondia que o azul estava em tudo, cercando a gente como água. Apenas a gente, por estar dentro, como num aquário, nao percebia o azul. Esse azul somente se adensava e se condensava a distância. A nossa vista, imperfeita para o derredor, para o cerco intimo do azul, torna-se perfeita, aguda, ferina, quando se trata de varar distâncias. O mundo se junta lá longe como as peças de uma composição harmoniosa"
"O amor acontece de repente, de estalo, é um estado de graça, um prêmio que requer do contemplado o zelo de sua guarda e posse e intensidade. Lutar pelo amor, impedir que o amor esmoreça, que a paixão inaugural vire fogo de palha, que as dificuldades normais da vida esvaziem ao invés de unir mais ainda macho e fêmea. Sim, o amor desafia quem ama de verdade a preservar-lhe a permanência — e isso tanto vale para o macho como para a fêmea. Nada de frescuras, de cabeças viradas. Se um homem e uma mulher se gostam hoje, então têm o dever de se gostarem também amanhã, ou pelo menos se esforçar para isso. Só acaba o amor que não há, ou que se disfarça na simples amizade ou na conveniência ou no hábito. Porra, é preciso merecer o amor"
"Pobreza não é desonra e muito menos corrupção. O que corrompe de verdade, de tato, ipso facto, é a miséria, sobretudo a miséria moral, como disse o Sr. Artur da Távola (...) Por pobreza eu entendo uma vida simples, digna, voltada para as coisas fundamentais. E quais são os fundamentos da vida? Ora, continuar, perseverar, multiplicar-se, ganhar o pão com o suor honrado de cada dia, edificar um teto, educar os filhos e participar utilmente da comunidade (...) Mas existem pessoas que não respeitam nossa pobreza, que querem nos empurrar, nos escorraçar para a miséria. Isso é maldade (...) O céu e o inferno, o bem e o mal, a verdade e a mentira — suspira agora o Surdo, a cabeça pendida para o peito, a mão torcendo um botão da camisa listrada — Opções que, a pretexto de reger o pacto social, são em verdade instrumentos de mando, poder, cobiça e acumulação"
"Aquele perigo maior, a cobra, aquela manifestação de mal supremo, a cobra que se alteia sobre a cauda para picar e matar, queria apenas dizer que ele fora escolhido para viver e sobreviver, brigar e amar e odiar e perdoar conforme a circunstância de seus orgasmos interiores; para durar muito, fertilizar mulheres, gerar filhos; para acumular sabedoria e amolecer o coração na prática da piedade e paciência e tolerância. Talvez porque os elementos e os seres espalhados no bosque de cacaueiros, dissimulados ou tão visíveis que ele não os pôde então enxergar, nele identificassem o amigo, o companheiro, o aliado e o conspirador. Mais que isso: o crente, o peregrino que desde o seu amanhecer retorna cheio de reverência às fontes da vida — e se purifica e se apazigua"
"(...) como se um homem de coração mole e vontade fraca fosse capaz de esquecer suas doenças e esquisitices para ir cobrar pagamentos de promissórias e extorquir juros de tomadores velhacos. Havia nadado muito para morrer na praia. Além disso a mulher partira antes, deixando-o sozinho e desatinado, sem aquelas rédeas invisíveis que o sofreavam sem ele sentir, sem as esporas invisíveis que lhe triscavam o flanco sem abrir feridas; deixando-o sozinho com o seu controle rígido, tão rígido que não deixava entrever a existência de uma brecha por onde escorreria de repente aquele esforço, aquela continência e abstinência represados"
"A desgraça alheia é o investimento seguro do capitalista desalmado"
"Está iniciada a conversa. Com alguns gestos e frases curtas serei capaz de alimentá-la como se chegasse lenha a um fogo fraco. Somente em último caso eu me levanto, aproximo a boca da orelha peluda do Surdo e grito. Umas vezes ele ouve, como se o som lhe chegasse de um fio suspenso desde o fundo do poço; outras vezes me obriga a repetir. Não gosto disso: a orelha não cheira bem, tem um odor de carne que deixou de ser fresca e que, graças ao sal, ainda não arruinou"
"Sua asma, em vez de regredir, cresceu forte e traiçoeira como a de seu pai. Às vezes os dois chiavam ao mesmo tempo, como se tocassem concerto de piano e violoncelo. O peito de ambos era um depósito de pios monossilábicos e polissilábicos, sonoros e estridentes, secos e catarrentos. E a tosse convulsiva se desdobrava, muitas vezes, em acessos longos que os deixavam dobrados em dois, a respiração por um fio, os olhos encovados e no rosto a lividez dos torturados"
Trechos presentes no livro de contos "O grito da perdiz" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.
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