Hélio Pólvora
Foto: Vinícius Xavier | Arte: Mirdad
"A cidade cria ao seu redor anéis de carentes e necessitados que passa a ignorar no justo instante em que confina os humildes fora do seu núcleo"
"Enquanto seu irmão procurava resolver o problema, chegaram a adquirir a certeza de que se conheciam, de que não precisavam de palavras, e olhando-lhe a cara, cabelos e olhos de índio, as maçãs do rosto sempre ruborizadas como se ardessem em febre e os lábios grossos, os ombros curvados e a respiração curta de asmático, seu irmão identificava uma dor e mágoa antigas, que se teriam acumulado em você como pó através de gerações. Sentado numa mesa de bar, com suas roupas baratas e um agasalho de lã afinal comprado numa dessas lojas que promovem liquidações, você dava impressão de um índio civilizado à força, que, com seus silêncios, mostrava quase total indiferença pela cidade e seus desatinados rumores. Da mesa do bar, balançando a perna defronte do irmão também constrangido, você acompanhava as mulheres bonitas passarem pelas calçadas como se fossem elas próprias luzes ambulantes, faróis, cometas de bamboleante cauda. E somente então, seguindo o rastro das mulheres, você acendia nos olhos um brilho menos baço que o de sua inteira pessoa"
"— Sabe que a perdiz na Europa é mais fiel? — disse Cazuza.
— Como assim?
— A união às vezes dura anos. Elas acasalam na primavera. Os casais ficam juntos até o fim do outono, e aí migram.
— Aqui é diferente? — perguntou Pedro.
— Parece que a perdiz fêmea é muito mais safada — disse Cazuza. — Põe ovos nos ninhos de outros machos.
— É mesmo?
— Claro. A poligamia campeia lá entre elas.
Cazuza riu grosso.
— Você parece bem informado sobre perdizes — disse Pedro.
— Experiência — disse Cazuza. — É mais fácil entender de perdizes que entender de mulher.
Fez uma pausa, completou:
— Incluindo a mulher da gente"
"Caminhos são cobras ondulantes, cheios de botes e negaças, de meandros e retas extensões, às vezes largos como estradas reais socadas pelas rodas e cascos e pés e tacões, outras vezes apagando-se no seu débil risco, quais rastros fugazes. Um caminho será sempre um convite; mais que isso: chamado, instigação. Caminhos e rios se parecem: existem para desafiar estados de repouso e indiferença e significam, na sua contínua fluência, a certeza de que as rotas prosseguem para o desconhecido — e assim há de ser, amém"
"Ele no silêncio, no cu do silêncio, ele próprio o silêncio, quebrando sem querer o silêncio, o pesado silêncio que parece significar a respiração subitamente suspensa de um peito estertoroso. O silêncio que se vai despojando do azul quanto mais ele avança e devassa seus esconderijos e distende suas dobras e sente o cheiro ora doce ora apodrecido de suas rotundas intimidades"
"Ainda bem que a Celestina se imagina cão e sai latindo pela casa. Imaginem se ela entra em transe e jura que viu Nossa Senhora. Ia ser uma tal de romaria por aqui que eu tinha de vender a fazenda pra não ver tanta gente estranha pisando no meu chão, mexendo no que é meu, cheirando o que me pertence. Chegava logo um padre pedindo dinheiro grosso pra construir uma capela no lugar da aparição. Felizmente a menina resolveu virar cachorro, se e que não foi descabaçada dentro dos matos e inventou essa mania pra enganar o pai e as irmãs, ou como penitência"
"No seu estado de desconcentração foi chegando a um ponto de entrega que em lugar de pensamentos punha apenas sensações, como se não houvesse a barreira da pele, o envoltório dos tecidos e o contrapeso das entranhas. Corpo distendido, cabeça esvaziada, Pedro era e estava. Era o cerrado — continuidade de seu calor, de suas fermentações, de suas metamorfoses e podridões, de sua vida em perseverante busca e captura"
"Munidos de seus facões afiados, mais enxadas ou foices ou podões, partiam para os cacauais, para roçar, limpar, colher, embandeirar e quebrar. Serviços que não tinham obrigação de fazer, porque o pai podia pagar, mas que atraíam seu pai, homem nascido ali, habituado ao cheiro da terra e do mato e com reduzido senso prático: enquanto outros maquinavam negócios lucrativos, ele se comprazia em verter o seu suor e em contemplações da natureza"
"O metabolismo de Itabuna vai empurrando para os arredores parcelas de habitantes anônimos, tal como um organismo sente necessidade de criar tumores para expelir substâncias indesejadas e abrir a pele à saída do sangue ruim"
Trechos presentes no livro de contos "O grito da perdiz" (Casarão do Verbo, 2013), de Hélio Pólvora.
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